Na Paris do pós-guerra tomada pelo espírito existencialista de Camus e Sartre, Francisco Brennand foi levado, entre a ansiedade e o êxtase, pelo amigo Cícero Dias para ver, pela primeira vez, uma exposição de Picasso. Em vez de telas, se deparou com centenas de cerâmicas. “Não imaginava que a arte grande pudesse estar na cerâmica”, diz ele, transformado, a partir dali, para ser não apenas o grande pintor de trânsito internacional, mas, afirmativamente, o ceramista que se tornou. Um homem do barro em fogo: “A única coisa que falta nas minhas telas é que elas não queimam no fogo”, diz Brennand que, hoje, comemora 90 anos de idade. Decidido a evitar comemorações, ele confirma, nesta entrevista exclusiva ao repórter Bruno Albertim, como a sua Várzea, o lugar onde, como disse o amigo João Câmara, brinca de Deus ao construir um universo, é o começo do mundo - o lugar onde vai concluir a existência.
JORNAL DO COMMERCIO - Brennand, fazer 90 anos sinaliza alguma mudança na sua trajetória ou é apenas mais uma data?
FRANCISCO BRENNAND - Eu não sei se a idade, como dizem os orientais, é a sabedoria dos mais velhos. Eu tenho minhas dúvidas. Não foi mais do que de passagem que eu vi uma moça dizer, num filme, que os velhos assustam os outros. Ali, eu tive o diagnóstico da velhice. Ao mesmo tempo, lendo um livro de esboço do pintor Jean Dominique Ingres, de quem eu gosto muito, um livro em que ele não se contentava em desenhar e também escrevia frases, ele disse: ‘Minha velhice me vingará’. Então, eu pensei com meus botões: ‘Como pode um velho se vingar?’. Depois, eu verifiquei que os velhos podem mesmo se vingar, porque, depois dos 80 anos, podemos começar a dizer uma coisa muito perigosa que é a verdade.
JC - O senhor já começou a dizer a verdade?
FRANCISCO BRENNAND - Não tenho mais a obrigação de ser gentil.
JC - A Várzea é não apenas a grande sede da sua obra, mas, também uma espécie de corpus de extensão da tua personalidade. A várzea, enfim, se tornou o “locus solo” que você pretendia?
BRENNAND - No meu retorno, eu quis deliberadamente fazer da Várzea o centro do mundo, o local onde o mundo começa e termina. É de uma grande pretensão que as grandes cidades, como Londres, Londres, Moscou, Roma, se arvorem em se justificar como o grande centro do mundo. Mas também justificável. Qualquer pessoa pode escolher um local para erigir o centro mundo. Eu eregi a Várzea. Com todas as implicações, até porque é o local onde eu nasci.
JC - Ter nascido e herdado esse antigo engenho não parecem suficientes para justificar o grande museu aberto de sua obra que se tornou... haveria outras possibilidades, até financeiramente mais proveitosas...
BRENNAND - Com o tempo, eu fui descobrindo os sentidos deste lugar para além de ter sido o lugar em que nasci. Quando pintei meu painel sobre Guararapes, lia (o historiador) Pereira da Costa, e constatei que o grande engenho da Várzea tinha pertencido a João Fernandes Vieira, que era o mais rico proprietário dos arredores do Recife, ao lado do qual veio morar André Vidal de Negreiros com o intuito de ser seu vizinho. Vieira começou comprar os entornos e fazer da Várzea, com seu prédios administrativos, a Câmara do Senado, a Santa Casa de Misericórdia, uma cidadela, uma cidade relativamente independente ao resto do Recife. A partir da Várzea, começaram as conspirações que determinaram a expulsão os holandeses. A Várzea tem esse começo. Aqui, também, foi o lugar em que, há exatos cem anos, meu pai deu início à produção de cerâmica. Isso acentuou-se no meu processo de trabalho, que me fez passar a chamar isto aqui de cidadela.
JC - Quando o senhor se for, o que será feito disso aqui?
BRENNAND - Vai se transformar numa fundação ou num museu, devidamente organizada.
JC - Você teria ainda alguma vaidade de ver sua obra transposta da Várzea para algum museu do mundo?
BRENNAND - Nenhuma. Se eu quisesse ter me tornando um artista expondo sempre em Nova Iorque, teria me tornado. Conheço diplomatas, sei bem esse caminho. Não é isso que me interessa.
JC - Em que momento resolveu voltar ao perceber que a ética e a estética da Escola de Paris não mais lhe satisfariam?
BRENNAND - Se eu quisesse ter feito uma carreira profissional como Vicente do Rêgo Monteiro, eu teria ficado em Paris, mas não foi um ato de lucidez. Uma decisão. Todos os meus hábitos e valores estavam aqui. Foi pura intuição aliada à ideia de que aqui é meu lugar. Não quero usar a palavra pátria, porque pátria é um refúgio de falso nacionalismo.
JC - Sua obra, tão íntima das questões humanas, é universalista. Mas teria sido Ariano Suassuna a influência na dicção regionalista de parte de sua obra?
BRENNAND - Não posso dizer exatamente que foi assim, porque a recíproca foi verdadeira. Quando eu fiz o Mural de Guararapes, Ariano estava longe de pensar no Movimento Armorial. Isso foi em 1961. O Movimento Armorial só aconteceu dez anos depois. Então, tudo aquilo que eu propugnava no meu mural na parte relativa à pintura, Ariano aproveitou.
JC - Abelardo da hora lhe colocou o barro nas mãos, e Picasso o colocou em sua cabeça?
BRENNAND - Quando Abelardo começou a aparecer para o mundo da arte, nessa época eu só pensava em pintura à óleo. Ele fazia cerâmica aqui, com meu pai, como modelador, quando era do Diretório da Escola de Belas Artes. Veja, eu sou um homem do século 20, mas tinha coisas do século 19, como acreditar que haveria artes maiores e artes menores. Que a pintura à óleo seria a grande arte. A escultura, no mármore de Carrara. Esculpir, para mim, era apenas retirar o material até obter a forma. Até que, em Paris, Cícero Dias, meu amigo, que ignorava completamente meus problemas (risos), mas que teve uma grande influência sobre a minha maneira de olhar as coisas, me convidou para uma exposição de Picasso. Eu fiquei alucinado, porque ia ver uma tela de Picasso, ia ver de perto aquilo que só tinha visto em reprodução. De noite, entramos na sede do Partido Comunista Francês, em 1949, e me deparei com cerca de 300 peças de cerâmica de Picasso. O espírito que animava seu olhar arcaico era muito mais a África que a Grécia.
JC - O Senhor evitou deliberadamente a geometria formalizada de inspiração positivista que poder se vista, por exemplo, na obra de de Di Cavalcanti e Volpi?
BRENNAND - Eu estava muito mais interessado na figura que na geometria, eu estava mais interessado em Balthus, que pintava aquelas figuras femininas lascivas. Aliás, o próprio Picasso conhecia Balthus e dizia: ‘É o jovem pintor mais interessante de Paris, porque todos os outros me copiam’. Eu tenho consciência do que é remar contra a maré, de poder estabelecer uma maneira de expressão que não fosse exatamente a mesma que estava sendo feita em Paris na época em que eu estava lá. Até Cícero Dias soçobrou, se entregou a um período de arte puramente abstrata, embora, em 1948, na exposição da Faculdade de Direito do Recife, ele já anunciasse essa tendência à abstração. Quando ele voltou, Gilberto Freyre, Ascenso Ferreira, todos seus amigos se decepcionaram com ele, porque ele não era mais o pintor regionalista como eles gostariam. Ele esteve em Paris, amigo de Picasso, e é muito difícil resistir a isso.
JC - Depois de publicar seus diários, o senhor está agora escrevendo ficção?
BRENNAND - Não tenho a menor pretensão de ser um grande ficcionista, até porque não dá para competir com os jornais. Vi na TV um documentário de Werner Herzog sobre um pretenso ecologista que resolveu viver numa comunidade de ursos a fim de defendê-los de uma ameaça nunca confirmada de humanos. Após 13 anos de convivência íntima com os animais, ele, na companhia de sua namorada, os dois foram esquartejados por um dos ursos. E, como você sabe bem, Herzog é um homem que sabe tirar partido das coisas, pegou essa história e fez uma obra prima (...) Botei na cabeça que, da mesma fora que aquele homem queria ser um urso, um urso queria ser um homem. Então, inventei que esse urso tinha saído da colônia, se humanizado com artistas de um circo, foi expulso por um desentendimento qualquer e, ao bater no Brasil, após uma confusão, ele vem viver na Várzea, onde, aliás, está preocupado com a segurança do Papa em visita ao Brasil.
JC - A morte é um medo?
BRENNAND - Eu temo o sofrimento, não a morte. Com a morte, só se perde o presente. Mas não o passado, que já não temos. Nem o futuro, que não teremos. Todos estamos muito próximos da morte, aos 19 ou aos 90 anos. Começamos a morrer quando nascemos. Mas já estabeleci cláusulas: não quero cerimonial fúnebre. Quero apenas ser colocado em algum lugar dessa cidadela.
JC - Sua obra afirma o poder do desejo como força catalisadora da existência. À esta altura, há ainda, Brennand, algum desejo não realizado?
BRENNAND - Eu não posso acreditar sequer em alguma filosofia assexuada. Sobre o desejo: o quadro que eu nunca pintei. A obra-prima ainda desconhecida.