Amarelinho, fumegante, cotidiano, ordinário até. Sobretudo, amado. O bom e velho cuscuz é a conexão pernambucana com a cozinha mediterrânea, o festejado sistema alimentar com preciosa capacidade de conjugar prazer e saúde a partir da tríade pão, trigo e vinho. “Nem sei se seria o maior, mas certamente é o mais visível símbolo da cozinha mediterrânea na cozinha brasileira e, em especial, na de Pernambuco”, dizia, entre garfadas curiosas numa fatia quente de cuscuz de fubá com cabrito ao molho, na última terça, o catalão Xavier Medina, professor da Universitat Oberta de Catalunya.
O antropólogo espanhol foi um dos participantes do Seminário Comida e Identidade, parte do evento Mesa ao Vivo, uma série de aulas, debates e degustações promovidas esta semana, no Recife, pela revista especializada Prazeres da Mesa e pelo Senac-PE. Durante dois dias, na sede da instituição, chefs e antropólogos como Xavier e o brasileiro Raul Lody enfocaram a ascendência mediterrânea com ênfase na região do Magreb na cozinha popular pernambucana e apresentaram novas possibilidades gastronômicas para o preparo.
“Cuscuz é a maior lembrança das minha idas, na infância, para a casa das minhas tias do interior. Era o meu acordar. A gente era acordado, de manhã, pelo cheiro do cuscuz no fogo”, disse, proustianamente, o chef César Santos. Empenhado em tirar o cuscuz da gaveta pejorativa normalmente atribuída ao que é extremamente popular, César usou nada menos que três tipos de cuscuz para acompanhar os camarões ao molho de manga do atual prato da Boa Lembrança de seu restaurante, o Oficina do Sabor. “O cuscuz pode ser um luxo à mesa”.
Antes de exibir suas criações com o cuscuz (algumas delas ilustradas nesta página), chefs entenderam melhor a origem do prato que é, na verdade, uma técnica que pode ser aplicada também às farinhas de arroz ou à goma de mandioca, também popular no Nordeste. “Esse cuscuz de mandioca sempre foi muito comum na minha infância”, diz Mariana Maranhão, chef-proprietária do bufê Doce Engenho.
Para o Mesa ao Vivo, ela criou uma sobremesa, a verrine de cuscuz. “Como quis evidenciar essa origem magrebina do cuscuz, servi o cuscuz como base para uma baba de moça (feita com gema) e um doce de tâmara”, diz ela. “Gosto de servir numa taça, que fica esteticamente mais interessante. Mas, se quiser, pode-se enformar a receita usando, no preparo, um pouquinho de gelatina para dar consistência”.
Por sua popularidade, o milho logo se adaptou à técnica de cozimento no vapor do cuscuz do Magreb. “No Brasil, a sêmola de trigo do cuscuz que ficou conhecido como marroquino foi substituído pelo milho. Com seu preço e acessibilidade, o prato ganhou popularidade”, diz Lody, coordenador e idealizador do seminário, confirmando a informação do pioneiro Câmara Cascudo. Em História da alimentação no Brasil, o folclorista afirma que o cuscuz de milho é uma solução americana para a receita clássica da África muçulmana.
Mas uma relação cultural intermediada pelos portugueses: “A chegada da cultura muçulmana vai se dar através do homem ibérico”, diz Lody. “Certamente o prato chegou ao Brasil com os portugueses”, diz Xavier. “Angola e Guiné Bissau não comem cuscuz”, explica.
Profissionais das panelas como Robson Lustosa, Bruno Catão e Mariana Maranhão criaram versões mais gastronomicamente arrojadas com o cuscuz, e não apenas de milho. “O cuscuz de arroz tem aparecido como uma boa alternativa dietética”, diz Lustosa. Já Catão aromatizou com canela seu cuscuz tradicional de milho para respaldar com o ragu de cordeiro.
Entusiasmada, a paulistana Mara Salles demarcou diferenças entre o cuscuz do Nordeste e o paulista. “O nosso é um feijão tropeiro, vem do farnel. O de vocês é uma sêmola hidratada e depois cozida”.