Preso político que sobreviveu à tortura é tema de filme de Emília Silveira

Com cenas do interior da Bahia e depoimentos não lineares que descortinam, pouco a pouco, o documentário refaz a inusitada fuga do ativista
ABr
Publicado em 02/05/2016 às 10:22
Com cenas do interior da Bahia e depoimentos não lineares que descortinam, pouco a pouco, o documentário refaz a inusitada fuga do ativista Foto: Foto: Divulgação


A tortura e a prisão nos porões da ditadura, que voltaram ao debate com a declaração polêmica do deputado Jair Bolsonaro (PP) em homenagem ao general Carlos Alberto Brilhante Ustra, é tema do Galeria F. O documentário da diretora Emília Silveira, que estreou no festival É Tudo Verdade, volta ao passado para falar do presente. Em estilo road movie (filme de estrada) mostra, com passagens bem-humoradas e poucas imagens de arquivo, a história de um preso político que sobreviveu à tortura e à prisão no regime militar, como a própria diretora, ex-presa política.

“Não busco imagem de arquivo para ilustrar o que as pessoas estão dizendo. Acho que o que elas dizem é forte o suficiente. O arquivo entra para reverberar o que o personagem tem a dizer e não para ilustrar”, explicou Emília, que usou, em determinado momento, trecho de entrevista do líder político baiano Antônio Carlos Magalhães para revelar o autoritarismo da época, que levou Theodomiro Romeiro dos Santos, personagem principal do Galeria F, a fugir da cadeia.

Com cenas do interior da Bahia e depoimentos não lineares que descortinam, pouco a pouco, a história de Theo para o público, o documentário refaz a inusitada fuga do ativista, desta vez ao lado do filho Guga, estabelecendo conexão com um passado que não foi expurgado. Era véspera da publicação da Lei de Anistia, que excluiu do perdão militantes condenados por atos terroristas, assassinatos e militares que praticaram todas as formas de tortura.

Reconstruindo o cotidiano de Theo na prisão, a primeira cena do filme logo revela como a família encarou e registrou o momento em que ele, um ativista no auge da juventude, aos 18 anos, foi condenado à morte, ao reagir à  prisão e matar um militar que perseguia outro companheiro. A foto desse dia, da condenação, ilustra um álbum de família, com muitas outras fotos de filhos e da esposa de Theo na prisão onde ele passou nove anos, antes de fugir, depois de ser ameaçado.

Por meio dos diálogos com o personagem, a própria diretora é obrigada a encarar suas vivências na ditadura. “Emília, você sabe, o desejo de todo preso é fugir”, comenta Theo, hoje anistiado, na cela onde ficou preso na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador.

“Fiz 20 anos de análise e achava que estava tudo ali arrumado (dentro de mim)”, contou Emília, que também dirigiu o filme 70 (2013), sobre os ativistas trocados no sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, grupo com quem conviveu. “Mas a vivência de fazer os filmes foi uma nova análise”, completou ela, que após a prisão, atuou como jornalista nos principais veículos do país.

À Agência Brasil, Emília Silveira fez um paralelo entre o golpe militar de 1964, o momento político atual no Brasil e o Galeria F – que estreia no circuito comercial no final deste ano. Em maio, está prevista, no Rio de Janeiro, uma sessão especial.

Leia a íntegra da entrevista:

Em um dos seus discretos diálogos com o Theo, ele fala da ideia fixa do preso, que é escapar. Você tinha essa ideia fixa também quando ficou detida no Rio de Janeiro?

Emília Silveira: realmente, você tem essa ideia fixa. Fui presa com 20 anos e fiquei dois anos. E quando você é jovem, quer liberdade, mesmo que essa liberdade seja uma coisa do plano imaterial. Eu tive dois momentos. O primeiro, é quando você sai da prisão provisória, da tortura, que você pensa que vai sobreviver, vai aguentar, vai sair dessa. Você só pensa nisso. Quando você vai para o presídio, convive com dois sentimentos conflitantes: a busca da liberdade e a adaptação ao novo cotidiano – que é o que tento passar nos meus filmes, tudo vira cotidiano. Então, você pode rir de uma situação difícil, você pode contar uma piada, que aquilo já fez parte de sua vida. Por um lado, você busca liberdade e busca aprofundar suas causas - 'estou nessa merda porque tem uma razão para estar aqui e não estou sozinha'' -, mas existe a rotina. A prisão tem uma rotina militar e eu me lembro que fazia um suéter de tricô, pensando que estava acostumada àquela vida e que se tivesse que passar mais 20 anos nela, eu passaria.

Como foi a escolha do Theodomiro como personagem?

Emília Silveira: olha, quando eu fiz o 70, voltado para essa temática da ditadura militar – que era mais um filme sobre pessoas, sobre almas, sobre seres humanos que passaram por essas experiências-limite – em uma das sessões a jornalista Margarida Autran me procurou dizendo que tinha uma história para contar. Na hora em que ela me contou, eu disse: essa história dá um filme. Nessa época, a Sandra Moreyra (parceira e roteirista do 70) estava viva (a jornalista morreu em novembro de 2015) e, naquele mesmo dia, a gente decidiu fazer o filme. Isso tem dois anos.

Sendo um documentário, por que tem poucas imagens de arquivo?

Emília Silveira: não busco imagem de arquivo para ilustrar o que as pessoas estão dizendo. Acho que o que elas dizem é forte o suficiente. As imagens de arquivo entram para reverberar o que o personagem tem a dizer e não para ilustrar. A televisão já tem um monopólio da imagem e da fala. Faz tudo de maneira que não deixe espaço para a imaginação do espectador e eu quis me libertar dessa escola, fazendo um cinema em que as imagens entram como complemento de um pensamento e não como ilustração. O próprio [Claude] Lanzmann – um dos meus ídolos do documentário, junto com Eduardo Coutinho – diz que ele, ao fazer Shoah, sobre o nazismo, não tinha imagens, porque era o holocausto, não tinha imagem dos fornos, nem nada. Na ditadura é um pouco parecido, não tenho imagem das pessoas sendo torturadas, da ditadura prendendo as pessoas nas casas. Por incrível que pareça, nesse filme tenho imagens de dentro da prisão porque eles [personagens] que ficaram nove anos lá foram fazendo. Abrimos, com isso, com a foto do Theo, depois de ter sido condenado à morte – o que é a coisa mais louca, para mim, do filme, que começa com um álbum de fotografia – essas coisas estão em álbuns de família. Agora, as imagens, da ditadura mesmo, elas não existem. O que fazer, então? Acreditar na força do seu personagem.

E como foi começar a filmar no dia do suicídio do Marcão Maranhão (ativista político, um dos personagens do filme 70 e amigo pessoal da diretora)?

Emília Silveira: Marcão morreu no primeiro dia de filmagem do Galeria F. Ele se matou [assim como outros dos ativistas trocados no embaixador, como Frei Tito e Maria Auxiliadora Lara Barcelos]. Eu estava na Bahia. O que eu fiz? Tomei dois comprimidos de frontal (remédio) e fui filmar. Muito louco. Temos que encontrar algum canal [para essas angústias].

Aquela cena do Theo andando na cela, de um lado para outro, era você também?

Emília Silveira: aquela cena estava na minha cabeça antes de começar a fazer o filme. Conversando com a montadora, comentei: 'acho que o Theo nunca foi solto'. Porque ele é aquela pessoa rígida, que não aceita o erro do outro. E aí decidimos terminar o filme como ele na cela [no presídio Lemos Brito]. No dia em que a gente gravou, fomos eu, o câmera e o menino do áudio. Entrei na cela – porque o filme só mostra a cela na última cena – no canto, e não falei nada. Não perguntei nada, não fiz nada, fiquei quieta. E aí, ele não é bobo, não sabia o que fazer, fez o que ele fazia sempre: começou a andar, andar, andar, andar. Não colocamos um trecho no filme porque o áudio não ficou bom, mas ele diz: aqui, dentro dessa cela, eu andei quilômetros.

Você sugeriu que foi torturada, pode compartilhar essa experiência?

Emília Silveira: não, nem pensar. Porque não adianta descrever tortura. É a mesma coisa que descrever o ato sexual, descrever certas coisas que eu não conseguiria.

Mas você ainda se lembra disso?

Emília Silveira: Fiz 20 anos de análise e achei que tinha superado. Acho que levo uma vida completamente normal desde 1972, quando saí da prisão e fui trabalhar no Jornal O Globo. Eu sou daquela cota de terroristas e comunistas perigosos que o Roberto Marinho empregava. A imprensa mudou muito. Fiquei um ano no Globo, depois fui para o Jornal do Brasil e, dois anos depois, tive meus [dois] filhos. Sou uma pessoa sequelada, como qualquer pessoa da minha geração que passou por isso. Mas sou como qualquer outra.

Fazer os filmes que mexem com esse passado ajuda a superar isso?

Emília Silveira: então, estava tudo ali arrumado (dentro de mim). A questão principal que eu tive, até profissionalmente, era não saber lidar com a questão do poder. De não saber mandar nos filhos, de não saber ser chefe, embora eu tenha sido chefe de tudo, daí para a frente. Fui diretora-geral de programa na Globo, editora-chefe de jornal durante 20 anos. Quando tive filho, decidi que minha militância ia ser profissional, eu não ia sacanear os outros, não ia fazer coisas com as quais não concordasse. Mas queria dizer que a vivência de fazer o filme foi uma nova análise.

Para você, que passou por tudo isso, como foi ouvir o deputado Jair Bolsonaro, na votação do impeachment, saudar um militar declarado torturador pela Justiça?

Emília Silveira: eu vi isso grudada na TV, sozinha, passando mal. Achei muito grave. Os golpes não são, necessariamente, golpes dos militares. O golpe ocorre toda vez que você breca uma realidade institucional para atender a interesses de pequenos grupos. A liberdade é tão importante para a democracia que temos de estar sempre atentos para não perdê-las. É patético ver que o Brasil está passando por isso em 2016, e os jornais internacionais estão denunciando. O Bolsonaro, ele é o que há de pior na sociedade, defende valores contra a humanidade. Mas a sociedade, não é reacionária, embora a vanguarda política hoje também seja minoria.

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