Um dia num filme de Cláudio Assis

Nosso repórter conta como é participar de cenas num set do diretor num cinema pornô com Cauã Reymond
Bruno Albertim
Publicado em 19/02/2017 às 6:00
Nosso repórter conta como é participar de cenas num set do diretor num cinema pornô com Cauã Reymond Foto: Fernando da Hora / JC IMAGEM


Ele foi o sétimo a ter que voltar naquele comecinho de tarde. Cabelos brancos bem penteados, insinuando um avozinho no parque de domingo com os netos. Aliança dourada no dedo esquerdo, barriga para muito além do cós denunciando os anos de excessos acumulados. Foi impedido de pagar os R$ 10 da entrada. “Senhor, nos desculpe, mas a casa está fechada para um evento privado. O senhor pode se dirigir para nosso outro cinema, perto do Parque 13 de Maio. Trabalha com o mesmo segmento”, informou a recepcionista de gestos tão polidos quanto a voz, meia-idade, cabelos diligentemente amarrados em coque. Não fosse o bordado com o nome do estabelecimento no peito, a mulher em nada se diferenciava das vendedoras de armarinho, lojas de pesca e financeiras da rua. Usava sua gentileza para informar que aquele homem não poderia entrar para lubrificar, como de costume, as fantasias sexuais longe de casa, como fazem os outros fregueses – homens com a cumplicidade de desconhecidos íntimos: se reconhecem com palavras e olhares ali; fora, jamais se cumprimentariam.

O clube ao qual o membro de cabelos brancos não teve acesso é um antigo cinema da Rua do Imperador, centro do Recife, lugar onde engravatados, senhores de chinelão, idosos na maioria, alguns michês e pouquíssimas mulheres se distribuem diária e furtivamente em duas salas. Administrado por uma unida família tradicionalmente heteronormativa que precisou abandonar a projeção de dramas e comédias para dar espaço aos filmes mais lucrativos de gente despida e diálogos não muito além de onomatopeias e sussurros, o lugar exibe no térreo transas entre homens e mulheres. Na tela do segundo andar, homens copulam com homens. Depois do almoço, concentrados, os atores Cauã Reymond, 36, e Gabriel Leone, 23, ensaiavam perto das cabines privês.

No velho cinema pornô da Rua do Imperador, Cláudio Assis Ferreira, caruaruense, 57 anos, maldito e aclamado na mesma proporção, premiado e criticado, dirigia os jovens galãs em três cenas de seu quinto longa-metragem, Piedade. Com o máximo de silêncio para não atrapalhar a concentração dos rapazes, umas cem pessoas trabalhavam na produção. Entre lambidas de olho no celular e num livro, eu também me concentrava para fazer parte de uma cena do filme protagonizada pelos atores. Como outros intérpretes e figurantes de apoio, não tinha a mínima ideia do que deveria fazer. Sob as orientações de não atrapalhar o fluxo da maquinaria e conversar sempre baixinho, esperava apenas ser chamado.

Parábola sobre o estado geral de desarmonia social e ecológica no Litoral Sul de Pernambuco, radiografia da sociedade pós-Porto de Suape, Piedade tem o Matheus Nachtergaele de todos os filmes do cineasta e também Irandhir Santos, brilhante como o poeta marginal de Febre do Rato, de 2011. Conta ainda com a última unanimidade nacional. Aos 87 anos, Fernanda Montenegro participa, pela primeira vez, de um filme de Claudão – assim o diretor é tratado tanto nos bares como no set. Dos maquiadores às jovens produtoras, a equipe sentia ainda falta da mulher que, sem embriaguez ególatra, apenas se acostumou a ser tratada como grande dama – do teatro, da televisão e do cinema – no Brasil. “Ela é de uma concentração, disposição e gentileza incomparáveis”, dizia a produtora Brenda da Mata, contumaz parceira de Assis.

Ao perceber a movimentação no imóvel vizinho, funcionários de um escritório no sétimo andar de um prédio tentavam se comunicar com um cartaz. “Fernanda Montenegro também está aí?”, perguntavam as palavras desenhadas com caneta piloto num ofício branco. Solicitada para fotos pelos próprios colegas de elenco, Dona Fernanda voltara para o Rio havia uma semana. Nachtergaele, Irandhir, Cauã, Gabriel e Nanego Lira, bicho brabo do teatro paraibano, seguiam, entre outros, filmando.

Naquela segunda, apenas Cauã e Gabriel estavam escalados. Pai e filho na trama, seus personagens moram e administram o velho cinema pornô do centro como um ponto de gravitação da escassa alegria da cidade fictícia de Piedade. Depois de beber qualquer coisa do bar da esquina, caminhando tranquilão pelo centro do Recife como se em casa, Cauã atendeu um passante com uma selfie. Algumas poucas vendedoras se acumulavam tentando imprimir o rosto do ator no celular. “Volto depois”, desculpava-se, camisa de botão, chinelão no dedo. Não queria desconcentrar.

No sábado anterior, eu apenas procurava não me emocionar demais com os velhos passistas de acrobacias agudas e grandes guarda-chuvas na mão de um desfile de prévia do Elefante de Olinda quando, diante da orquestra, a produtora Camila Valença respondeu ao meu abraço com uma pergunta. “Te ligaram?”. “Sobre o quê?”. “Você tá escalado para participar do filme de Cláudio”. Mulher do diretor, ela me passou o horário e endereço enquanto o bloco engolia os Quatro Cantos de Olinda. Não tinham ainda ligado. 

Entre a surpresa, o receio e a curiosidade, fiquei com a última. Frequente na noite do Recife quando não está filmando, Claudão é aquele sujeito com quem a gente, para a alegria ou tristeza, antes das últimas cervejas, acaba engatando alguma polêmica. A mesma contundência de opiniões nos bares ou festivais seria, era de se esperar, seu temperamento no set. Se as sequências seriam gravadas num cinema de pegação, as cenas, por gravitação, não deveriam ser rigorosamente católicas. Com medo da exposição, outros amigos declinaram da exposição. Fã do cinema cru de Claudio, enfiei o medinho em algum lugar do canto direito do cérebro. Se o cara me escalara, acha que posso contribuir de alguma forma firme em sua narrativa. O próprio Cauã provocou um certo desconforto com seu principal empregador ao declinar de uma novela na Globo para filmar no Recife. Não se recusa o convite de um autor. Não de alguém com raciocínio e coragem além das fórmulas.

ROCK' N' ROLL

Na segunda-feira, vários amigos com interrogações na cara, quase todos não-atores, estávamos ao meio-dia na locação. Cinema é paciência. Foi a primeira lição. Mais de quatro horas de espera, atores ensaiando falas e marcações, e o teto dos quartinhos privados onde um motel é improvisado no segundo andar do cinema finalmente retirado para que a câmara pusesse fazer um travelling aéreo. Delicadíssima, Júlia Moraes, diretora-assistente, se apresenta e, quase rouca, apresenta a tarefa. “Gente, obrigadíssimo por estarem aqui. Hoje, começamos a parte mais rock’n’roll do filme.”

Sem roteiro prévio, discutíamos com ela o que poderia ser feito dentro do que se esperava ser feito. “Não queremos que nenhum de vocês fique desconfortável”, dizia a neta de Vinícius e ex-mulher do próprio diretor. Também ex-namorada de Claudão – ele tem o hábito incomum de construir amizade e parcerias com as mulheres com as quais tenha se envolvido –, a cineasta Cecília Araújo deixou Mateus Brant, seu assistente na função, cuidando do making of, e vestiu o corpete de uma personagem. Resolveu atuar. “Podemos fazer algo juntos, Bruno”. Não fizemos. 

Daniel Barros, jovem ator de fôlego incomum nos palcos locais, o múltiplo Gigante César, do Rio, e outros amigos estariam no set. Felipe Fernandes, antigo colega de redação, cineasta recém-premiado com seu curta de estreia em Cannes, era um dos assistentes do diretor. Houvesse o que houvesse, havia uma cama de conforto, cumplicidade, afeto. Se pode, aliás, ser incisivo com os assistentes diretos, Cláudio esculpe o máximo de delicadeza para tratar seus atores e figurantes. Discute rapidamente as cenas, dá um beijo em cada um, se manda pro lado do monitor onde pode ver a câmera radiografar seus personagens.

No único camarim, Gabriel Leone mal percebia o que a moça fazia em seus cabelos enquanto eu colocava rapidamente o figurino escolhido por Andrea Monteiro. Sentado, o ator repetia para si o texto rascunhado em papel amassado. “Vamos filmar”: Júlia Moraes convocava para assumir os lugares no set. 

A câmera precisava dançar com a precisão da marcação das falas e movimentos – uma cena tensa, conflito politizado entre pai e filho, moradores e dependentes daquele espaço onde, alegria possível, a clientela leva seus hormônios para passear. Cauã e Gabriel passavam as marcas quatro ou cinco vezes.

Aos figurantes, Julia Moraes pedia que ficassem à vontade para criar as ações. Sem manteigas de um último ou qualquer tango em Paris, houve recato e sussurros. Silêncios e pequenas cortinas de feromônios. Um casal me pedia opiniões sobre jogos físicos. “Amore, você acha que tá chique assim? Ou tá muito normativo?”, ela perguntava. “Tá chique, tá muito chique”, respondi. Havia mesmo elegância na forma como examinavam a plasticidade dos corpos em interação. Uma elegância reverente.

Se dar spoiler é a contravenção mais venal do nosso futuro comum de hoje em dia, melhor não avançar, aqui, em detalhes do diálogos e ações. Passava das dez da noite, cenas repetidas com a precisão disciplinada de uma prostituta de Nelson Rodrigues, a produção começa a nos dispensar. Um abraço afetuoso em cada um encontrado pelas escadas até a porta e a certeza de que cada um naquele ambiente metabolizava o cansaço com a certeza de que aquela história precisa mesmo ser contada.

Ao dobrar a rua em direção ao ponto de táxi na Avenida Guararapes, o senhorzinho de cabelos brancos impedido de entrar no cinema depois do almoço bebericava uma cerveja em copo de plástico com amigos numa roda de dominó sobre a mesa enferrujada. Entre lembranças daquela tarde, o cansaço nos olhos e os prédios da Dantas Barreto, o Recife parecia a cidade que nunca havia deixado de ser.

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