Projecionistas levam suas vidas nos corações dos cinemas do Recife

Profissionais praticamente invisíveis, os projecionistas colecionam histórias enquanto projetam outras nas telonas dos cinemas
Rostand Tiago
Publicado em 16/03/2018 às 9:32
Profissionais praticamente invisíveis, os projecionistas colecionam histórias enquanto projetam outras nas telonas dos cinemas Foto: Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem


O cinema como experiência abraça uma gama de elementos. É um ritual que começa ao se programar em casa, deslocar-se e sentar em uma sala escura com estranhos, ficando totalmente vulnerável a uma luz que vem das profundezas do local. Por trás desta luz, que projeta as imagens das narrativas (ou não-narrativas), há alguém, de carne e osso, que acaba por acumular histórias ao projetar outras. A visão ampla da sala de exibição e os percalços da profissão ajudam nisso. E assim, estes projecionistas, profissionais invisíveis, levam suas vidas nos corações dos cinemas da cidade.

Miguel Tavares, 44, tem sua vida ligada a cinemas desde sua juventude. Seu pai trabalhou na construção do extinto Cinema Veneza, localizado na Rua do Hospício, e garantiu um emprego na área de limpeza após o término da obra. Foi por meio dele que Miguel também começou a trabalhar na mesma função no local e foi migrando por vários cinemas, até parar no São Luiz. Lá, começou a frequentar a cabine da projeção e foi aprendendo o ofício de longe, apenas observando. Quando um projecionista precisou tirar férias, surgiu a oportunidade de mostrar sua expertise com o equipamento. Vingou e já trabalha como projecionista há 12 anos.

"Sempre fui apaixonado por cinema, aperreava meu pai para me colocar pra dentro da sessão nos fins de semana e hoje estou aqui, trabalhando no coração do cinema", afirma Miguel. Entre suas histórias enquanto projetava histórias, ele lembra de quando precisou ficar mais de duas horas com a mão dentro do projetor. "O filme de película 'torou' durante a projeção e não podia deixar arranhar a fita, então coloquei a mão lá para impedir isso. A sessão estava lotada, era uma pré-estreia, se parasse a exibição, ia ser o maior vexame. Botei o dedo para a fita correr livre e não tocar em nada por duas horas", relembra.

Situações como essa ficaram mais raras com a transição do equipamento de projeção, que passou da película de 35 mm para o DCP digital, com o projetor adquirido em 2015 pelo São Luiz. "Antes a gente recebia o filme dividido nos rolos e tínhamos que montar em ordem no projetor. Precisava de bastante atenção para o filme não ficar de cabeça pra baixo ou fora da sequência. Agora no digital, tem que ter bastante atenção, colocar o filme certo na playlist, para não ter confusão. Não que a película seja ruim, mas a mudança a qualidade de imagem e som do digital é muito boa", explica. O antigo projetor ainda é mantido e alguns filmes são exibidos nele.

Quem também passou por essa transição tecnológica no cinema foi João Bosco, 54. Entrou profissionalmente para o Cinema São Luiz há 36 anos, em 1982, como técnico de refrigeração. Com o fechamento do cinema em 2006, ele foi transferido para o cinema do Shopping Boa Vista, onde aprendeu o ofício de projecionista. O São Luiz reabriu em 2009 e precisavam de alguém que trabalhasse na cabine e conhecesse o local. Assim, João foi logo convidado para voltar a trabalhar no local, desta vez na cabine de projeção, onde aprendeu também a manipular o equipamento digital com um técnico de São Paulo.

"A película é muito mais complicado. Ela vem dividida, então tem que verificar se está tudo certo, montar parte por parte. Digital é como se sentasse em sua casa, colocasse um DVD e assistisse", afirma.  João Bosco, se orgulha que nesses 12 anos de profissão, nunca ter acontecido nenhum problema em suas projeções e diz ter uma afeição especial aos métodos mais antigos. "Trabalhar com película é uma coisa linda, ir para a bancada, revisar o filme, montar, colocar no projetor, fazer emenda em menos de um minuto caso a fita parta. Digital é mais vazio", conclui João.

 

 

Uma história de 20 anos por trás da luz

A projecionista Luciene Arruda possui uma trajetória semelhante a de João Bosco, trabalhando em shoppings e em cinemas menores, com uma carreira cheia de idas e vindas. Tudo começou há 20 anos, quando Luciene se candidatou para trabalhar na bomboniere do cinema do Shopping Recife. A administração do local avaliou o currículo dela e preferiu colocá-la na cabine de projeção, já que tinha alguns cursos da área de eletrotécnica na bagagem. “Tive um treinamento de dez dias lá, aprendi na porrada mesmo, nem sabia como era uma sala de cinema por dentro. Vi todas as máquinas e fiquei ‘meu Deus, vou conseguir mexer nisso não’”, conta Luciene.

Ela venceu as máquinas e trabalhou no complexo sistema de exibição de um cinema multiplex, com dez salas. "Era muita sala para organizar, então a gente não ficava necessariamente na cabine, ficávamos em uma central de monitoramento das cabines. Quando dava algum problema, a gente ia para as cabines e resolvia", conta. Passou dois anos nessa jornada mais movimentada, até que foi chamada para trabalhar na Prefeitura do Recife, no Teatro do Parque no Cine Apolo. Foi conciliando a vida entre a projeção e os estudos de graduação em pedagogia por 18 anos. Estava pronta para começar a lecionar quando foi convidada para trabalhar no Cinema do Museu, administrado pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Nessas rotinas, adquiriu um arsenal de habilidades em diversos tipos de projeção. Super-8, 16 mm, 35 mm e, mais recentemente, a digital. "Ao trabalhar com uma sala só, é menos corrido. Como só tem um projetor, a possibilidade de ocorrer um erro deve ser zero. Eu faço tudo com muita responsabilidade para isso não acontecer. Eu amo cinema, então tenho concentração máxima entre tela e projetor, para não deixar nada errado", explica.

O "teste das cabeças"

Mesmo com essa possibilidade de algo dar errado ser quase zero, às vezes algo acontece, mas nada que seja irremediável. Uma das pessoas que divide essa responsabilidade com Luciene no Cinema do Museu é Thaynam Lázaro, que desenvolveu técnicas para conferir se está tudo correndo bem. "Nossa profissão é praticamente invisível, o público só lembra da gente quando algo dá errado. Então, eu uso o 'teste das cabeças' para saber se tá tudo bem. Se as cabeças estão viradas para a tela, as coisas estão funcionando certo. Se estão me olhando, é que tem algo errado", elucida Thaynam.

A relação do jovem de 27 anos com a sétima arte vem desde a infância, quando começou aos 9 anos a frequentar sozinho a sessões do acessível cinema do Teatro do Parque, hoje fechado. "Eu estudava no centro da cidade, ia para o Parque e via o mesmo filme um milhão de vezes", afirma. Frequentava também outros cinemas do centro, chegando ao ponto de conhecer os funcionários do cinema do Shopping Boa Vista e conseguir entrar de graça quando as sessões não estavam muito lotadas. Apaixonado, formou-se em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e participou de um curso para se capacitar na área de projeção. Thaynam ainda se envolve com produções no seu tempo livre.  

Segundo ele, o que mais pesa quando pensa na profissão é a responsabilidade com o aparato que lida. "São equipamentos caros, é um órgão público, se quebrar alguma coisa, o cinema meio que fecha. É preciso ter muito cuidado e zelar por tudo", aponta. Esse zelo é sintomático de um profissão que zela também pela experiência cinematográfica para quem faz todo o ritual da ida ao cinema. Afinal, se a sétima arte mudou a vida destes profissionais invisíveis, que ajudam no bombeamento do coração do cinema, nada mais justo do que se esforçarem para que ela continue existindo da melhor forma e mudando outras vidas.

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