Cinderela: da noite do Recife para o teatro

De volta à TV Jornal, o ator Jason Walace tem a personagem no destino
Bruno Albertim
Publicado em 09/11/2014 às 4:33


Ele pode até nem ter plena consciência: se um dia deixar Cinderela, a personagem jamais o abandonará. “Sabe que nunca parei para pensar sobre isso? Mas, veja só, Didi tem mais de 50 anos na vida de Renato Aragão. Chico Anysio morreu fazendo os personagens da vida toda”, reflete Jason Wallace, enquanto dá uma mordida numa paçoquita à mesa do boteco de Santo Amaro em que conversamos. “Sou doido por paçoca”.

Se não do acaso, Cinderela é filha das circunstâncias. O ator já comia um dobrado, se revezando com projetos de teatro escolar e o que mais lhe aparecesse, quando surgiu a oportunidade de levar seus esquetes para a noite do Recife. Antes de virar o blockbuster atual, Cinderela foi “parida” ao som de bate-estaca, entre um drinque e outro.

Hoje menos comum, as boates voltadas para o público gay dos anos 1980 e começo dos 1990 tinham entre o expediente a prática de divertir a clientela com esquetes e dublagens de cantoras famosas. “Mas a gente não ficava só na dublagem, colocava um enredo com começo, meio e fim”, lembra o ator, contando sobre como gastou muita maquiagem nas extintas Misty, Araras e Mangueirão. “Era uma loucura, fazia as boates de noite e os espetáculos infantis pela manhã”. Com ele, estavam vários dos integrantes da primeira e clássica formação da Trupe do Barulho, que passariam inacreditáveis sete anos em cartaz com a peça Cinderela no Waldemar de Oliveira. Entre eles, Edilson Rygaard, que faria o príncipe; Roberto Costa, futura “Fada-macumba”; os irmãos Paulo e Célio de Pontes, que se revezariam no papel da madrasta, e o falecido Luciano Rodrigues.

Aurino Xavier, intérprete do Chupa Engole, também estava lá. Hoje, ele é o dono da marca Trupe do Barulho. Com sua produtora, a Oxe Mainha, Jason tem montado e dirigido comédias com a estética e o humor de ambiguidade sócio-sexual que consagrou. “Prefiro montar e deixar com eles para tocarem, por causa da minha correria”, ele diz. Com as marcas da duração presentes em tudo que faz, as peças costumam ficar em temporada por um tempo inimaginável na média do teatro brasileiro atual. Preta de Neve ficou dois anos seguidos em cartaz. A última, Mãezona, está prestes a completar um ano no Waldemar de Oliveira. Nenhuma montagem leva menos de 12 meses para ficar pronta. “Dou o tema, os meninos escrevem e, até aprovar o texto, ensaiar e ficar pronto, não demora menos de um ano”.

Cinderela teve uma precursora: Dircinha Coca-cola. “Era uma ex-chacrete, mãe solteira, desbocada, que trabalhava em casa de rico, onde aconteciam várias coisas”, lembra. Na boate Araras, Jason investiu um pouco mais de dramaturgia na personagem e criou a hilária esquete A Bicha borralheira, a história que sua mãe não contou. Ex-integrante do mítico Vivencial Diversiones, Henrique Celibi criara a Cinderela. “Mas a dele era mais pra Disney, não era suburbana como a minha”, lembra. Na noite, Jason tinha também a tutela do mestre Luiz Lima, com quem trabalhou na jornada do espetáculo Salve-se quem puder. “Ele foi minha grande escola, me ensinou a usar as frases, a parar o texto na hora certa”, relembra.
    Foi o desconcentrado público da noite quem o incentivou, involuntariamente, a levar a personagem para o palco. “Quando eu vi que aquele povo doidão da boate parava para ver a história do começo ao fim, resolvi arriscar”, conta. Ao procurar o Waldemar de Oliveira, a direção do teatro sugeriu o horário “underground” da meia-noite, sobretudo pelo conteúdo sexualizado e escrachado da peça. “Acho que essa coisa de começar à meia-noite aumentou uma aura mítica em torno da gente”, acha ele. Lotadas uma a uma todas as sessões, Cinderela acabou por consumir sete anos seguidos de temporada.
    Progressivamente conhecido, Jason Batista da Silva Ribeiro se transformava irreversivelmente em Jason Wallace. “Todo mundo acha que escolhi esse nome artístico por causa de algum ator inglês”, conta, entre risos. “Wallace era o namorado de uma tia minha, que morava no Jordão, foi uma coisa de batismo mesmo.”
    Reconhecido por poucos quando tira “os quilos” da maquiagem feita por ele mesmo – e que lhe exige pelo menos uma hora de trabalho, antes de se transformar em Cinderela –, Jason não é muito da noite que lhe serviu de maternidade artística. “Por que a gente é ator, acham que a gente tem que estar disponível para ter opinião formada sobre tudo. Também não suporto lugar da moda, com fila para pedir uma cerveja, pra ir no banheiro. Me divirto muito no trabalho, com o humor dos colegas”, diz ele, que, na dicotomia gravações-casa, vai uma vez outra tomar uma cerveja com amigos. “Mas só perto de casa, em lugares em que eu já conheço os garçons, onde fico à vontade”, diz o morador do Espinheiro.
    Com a popularidade, não demoraria também para chegar o desprezo dos eternos devotos de Beckett, Brecht e Tchecov. “Não falavam diretamente comigo, mas eu ouvia muita gente dizer que alguém disse que nós éramos a escória do teatro.” Os travestidos tresloucados imporiam, com o sucesso, respeito. “Não sei se ele lembra, mas fiquei muito feliz quando, ao ver a fila que dava voltas para nos ver no Teatro do Parque, (o diretor Antônio) Cadengue disse que eu era uma espécie de Sarah Bernhardt do Recife”, ri. Publicado pelo professor e dramaturgo Luis Reis, o livro  Cinderela – a história de um sucesso teatral dos anos , traria outra boa dose de prestígio ao grupo.
    Numa das noites, o então diretor da TV Jornal José Mário Austregésilo se viu completamente seduzido após uma apresentação. Assim, convidou Jason e sua trupe para apresentar o Carnaval da emissora em 1994. Em 2004, o personagem ganhou um programa semanal. Um ano depois, já era diário. Com audiência surpreendente e anunciantes insistindo em manter contratos anuais, performance mantida até hoje, o programa virou diário. Depois de um ano em outra emissora, Cinderela volta à TV Jornal no próximo dia 17. “Eu já saí sabendo que ia voltar. Tenho novidades, o formato vai ficar muito mais redondinho.”
    Nos palcos, Cinderela teve a mesma razão do sucesso, replicado na TV, no fato de se apropriar, antropofagicamente, da vertiginosa dicção popular. “Como ator e diretor, sou um grande observador. O que levei para a TV foi a fala da favela, do subúrbio, do povo”, diz ele, negando a autoria de bordões hoje nacionalmente famosos como “Oxe, mainha”. “Eu apenas reverberei isso”, minimiza o mais velho dos filhos de dona Ednalba Batista Braga com o popular Pajé do Cavaquinho, figura de alta estirpe nas boas rodas de samba do Recife.
    Assimilado pela comunicação de massa, a personagem não parece ter mais nenhuma herança do passado underground e notívago. “Cinderela virou um clown, as pessoas não a veem como homem, como mulher, como trans, a veem como uma palhaça. Na rua, até alguns evangélicos veem falar comigo. Fazem questão de dizer que são evangélicos, mas que me assistem e me adoram”, diz o dono da personagem que é quase água de coco, banho de mar e sábado de Carnaval no Bairro de São José: uma espécie de unanimidade pernambucana.

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