O Capibaribe de João Cabral visto hoje

O rio que corta o Recife ainda tem muitas semelhanças com a ode às avessas feita pelo poeta pernambucano nos seus versos
Diogo Guedes
Publicado em 23/12/2012 às 6:00


João Cabral de Melo Neto chegou a comparar o Capibaribe à madalena de Marcel Proust em Em busca do tempo perdido>. É o elemento que dispara involuntariamente a máquina do passado nas nossas mentes. O rio não poderia ser melhor definido, pois funcionava exatamente assim: mesmo quando já morava muito longe do Recife, o curso d’água era a obsessão temática do autor. Ele mesmo disse, em poemas mais tardios, que “o Capibaribe repete / o que diz e contei no Rio / e mais de uma vez repeti / em poemas de alguns outros livros”.

O Capibaribe de Cabral era um rio de memória, de um momento passado, mas sua descrição poética é ainda um retrato de uma paisagem que não mudou tanto. Claro, as palafitas que Severino vê quando chega à cidade em Morte e vida severina são mais raras, mas estão longe de ser inexistentes. A impressão de que aquele é lugar metade lama e metade água não só se mantém como foi tomada como símbolo de um dos principais movimentos culturais da cidade, o manguebeat, em uma apropriação que pescou tanto na sociologia de Josué de Castro como na poética de Cabral.

No centro do Recife, o Capibaribe persiste sendo um rio de maré, em duras batalhas no seu encontro com o mar. Na ponte que leva o nome do engenheiro e poeta pernambucano Joaquim Cardozo, grande amigo do recifense (pena não haver uma semelhante homenagem a Cabral: além de um rua no Barro, o poeta tem apenas uma estátua que, pelo menos, está bem localizada, de frente para o Capibaribe), pescadores solitários esperam os transeuntes passarem para poder jogar suas redes para trás e atirá-las ao mar. Uns poucos e pequenos peixes voltam a cada tentativa, mas o movimento se repete sucessivamente.

O rio ainda pulsa vida na sua estagnação, carregado da terra que vai levando das margens. Nessa parte seca, a mais submissa ao mar, os barcos têm sua navegação limitada. Há até mesmo homens a pé, catando caranguejos em meio a areia e lama. O Capibaribe é um rio que também é capinado.

Na terra, as ostras que a maré traz são parte dessa vida mineral das águas, vida que é parcialmente pedra, esse elemento tão cabralino, como provam os livros A pedra do sono ou de Educação pela pedra. As plantas compõem o restante dessa paisagem sólida, escoradas nas margens de concreto do centro da cidade.

Mais do que peixes e caranguejos, parece que o próprio rio é pescado de cima da pontes, de cima dos barcos, de cima da terra. No Capibaribe que se esconde atrás de Apipucos, é possível até mesmo ver homens retirando o rio do próprio rio, pegando – legalmente ou ilegalmente – a sua terra para fazer argila.

Seco como aqueles homens, ele parece só um parente distante daquele rio imponente de maré cheia, que infla a vista da cidade e recebe passeios de catamarã, em sua imagem sólida. Cheio, sua água parece esconder o seu dom de cão sem plumas, de severino.

Ainda que continue distante daquele rio de odes e olhos azuis que mapas e poetas quiseram inventar, o Capibaribe segue, muito depois de Cabral, como um lugar que existe além das fotos de postais, das paisagens da rua da Aurora. Nas suas pequenas mudanças, a realidade atesta a poética de João Cabral e mostra que, de fato, a beleza diz menos do que o real, o que é sujo de vida: o rio é mais rio quando é seco e está com seus homens secos.

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