Nos mapas, o Rio Capibaribe é um senhor arrumado, formalmente pintado com olhos azuis. São os olhos imaginados para ele, mas que o rio, na verdade, não tem: caso fosse preciso dizer a cor do seu olhar, talvez fosse melhor apontar as íris de um cão, de um “aquoso pano sujo”, como diz o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Ele, João Cabral, e o Capibaribe são pares, estabelecidos não pela facilidade de adjetivos comuns, mas pelo esforço: para nenhum dos dois servem as definições grandiloquentes. Apesar de ser transformado em um cartão-postal, o Capibaribe não é um rio muito afeito às odes tradicionais, aos clichês; e nem João Cabral, mesmo com seu status único na poesia nacional, parece caber no posto de O Grande Poeta Brasileiro – definição que veste muito melhor Drummond. Coube ao mineiro ser o melhor dos poetas que representa o nosso modernismo, mas Cabral é (ainda) mais complexo que o complexo Drummond: sua poesia não é síntese dos nosso experimentos poéticos e estéticos do século 20, mas sim um caminho que aparenta ser singular.
Antonio Lobo Antunes, no prefácio do recém-lançado livro O rio (Alfaguara/Saraiva, 160 páginas, R$ 40), que reúne os versos de Cabral sobre o Capibaribe e outras águas, explica um pouco porque ele é um poeta tão singular (e, aqui sim, usa adjetivos absolutos). “Na minha opinião, certamente discutível, João Cabral é o melhor poeta do nosso idioma no século 20: enquanto em todos os outros se podem detectar inevitáveis influências e contaminações, João Cabral afigura-se-me um milagre surgido do nada, um discurso que não deve seja o que for a ninguém a não ser a si mesmo, uma voz ímpar, uma criação única”, aponta, no curto texto.
Esse é Cabral, o poeta menos contaminado porque é o poeta da infecção – é só lembrar a impressionante inversão do final esperançoso de Morte e vida severina, em que ele fala do sangue novo que corrompe a anemia e da vida nova e sadia que infecciona a miséria. Só um poeta que transforma a ode em descrição crítica e faz a realidade cruel soar como uma homenagem pode ser capaz de entender o Capibaribe, um rio às avessas como o próprio projeto poético do pernambucano.
O rio, edição de luxo com capa dura e caixa, organizado pela filha do poeta, a cineasta Inez Cabral, traz três poemas longos sobre o Capibaribe – O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina –, além de outros diversos em que Cabral fala de rios. É uma bela reunião de uma das principais temáticas do poeta pernambucano, ainda que o volume merecesse também algum ensaio crítico sobre a relação entre a poética de Cabral e o Capibaribe.
Inez, na curta nota da organizadora, descreve a fascinação que o rio exercia no seu pai: foi para ele “um filme em sessão contínua, uma leitura sem fim”. Em entrevista ao JC, ela confessa que o Capibaribe funcionava aos olhos de Cabral como um elemento de comparação para qualquer outro curso d’água – “o Capibaribe foi para ele o que é a Bahia para Gilberto Gil”. “Tenho para mim que a poesia dele se alimentava da memória, e, como o rio Capibaribe pautou a sua infância e primeira juventude, acredito que fosse uma de suas maiores referências”, aponta a herdeira, que planeja lançar em 2013 edição fac-símile do manuscrito inédito e inacabado do pai, intitulado Casa de farinha.
Em O cão sem plumas, está presente o Capibaribe que pode ser compreendido pela rejeição da beleza – nada de sutileza da chuva azul ou da fonte cor-de-rosa. É um curso de águas sem plumas, um rio-cão, lugar de caranguejos, de lodo, de ferrugem. É essa parte urbana do rio, “grávido de terra negra”, que é revirada – não dissecada, porque é sempre tratada como um corpo vivo, e não descrita, porque Cabral nunca diz apenas o que vê na superfície – em suas entranhas. Nos versos, o poeta se pergunta: “Por que parecia aquela / uma água madura? / Por que sobre ela, sempre, / como que iam pousar moscas?”.
O fluxo das águas se confunde com os próprios homens que vivem nelas e delas, homens de lama como o rio é de lama. Para a pesquisadora Lenise Santiago, doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, esse é um traço de destaque do poema. “A imagem do homem caranguejo que se confunde com os elementos do mangue é muito forte e intrigante, como dizem os versos cabralinos: ‘Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem’”, comenta.
Para a pesquisadora, as imagens e a linguagem criadas por João Cabral para descrição desse rio, que também é aquém do rio, carregam ainda uma relação intencionalmente conflituosa. “É bem evidente que a obra em referência acomoda uma tensão temática coletiva e percebe-se que os signos poéticos: o cão, o rio e o homem mantêm uma relação de traspassamento em que todos eles sincronicamente compõem uma extensão de suas imagens descritas como espessas, densas e estagnadas”, aponta.
No volume de título sugestivo Duas águas, em que reuniu parte da sua obra, o próprio Cabral botou O cão sem plumas em um corpo à parte de O rio e Morte e vida severina. Não se tratava de uma divisão temática, como ressalta a escritora Susana Vernieri, doutora em Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autora do livro O Capibaribe de João Cabral. “O cão sem plumas ficaria só, numa ‘água’ de maior densidade, objetividade, incomunicabilidade e dificuldade para leitura. O rio e Morte vida severina estariam numa outra água de maior fluidez, subjetividade, comunicabilidade e, em certos aspectos, de maior facilidade para leitura”, explica.
O poema que empresta seu título à coletânea, O rio ou relação de viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, é uma narração que dá conta do Capibaribe desde sua nascente até a foz. Mais do que humanizado, o curso fluvial ganha em si voz, como um observador da geografia e dos homens que o cercam. A prosa cabralina aqui tem a métrica e a sonoridade mais direta, de forma parecida com o que acontece com Morte e vida severina. Ainda que a densidade do jogo entre linguagem e imagens do rio seja menor, mantém pontos fortes quando fala da relação das águas com a terra de pedra do Agreste, com as usinas da Zona da Mata, com a esperança do encontro com o mar.
Por sua vez, Morte e vida severina talvez seja o verso em que o rio pernambucano tenha um papel mais sutil. O auto de Natal narra a trajetória do imigrante Severino, que segue o curso do Capibaribe alimentando a esperança de encontrar um emprego e uma vida decente no Agreste, na Zona da Mata e no Recife. Texto mais popular de João Cabral, nele o rio assume quase que unicamente o seu caráter social, onipresente durante toda a narrativa. Torna-se, na verdade, uma paisagem que progressivamente muda em aparência sem mudar em essência, porque o sofrimento dos homens severinos é reiterado mesmo nas terras das oportunidades, próximas do litoral. No fim, é no Capibaribe que é expresso o dilema final de Severino, o de[TEXTO] pular da ponte e da vida para o “caixão macio de lama”. A resposta, em sua esperança precária, vem a partir do nascimento do filho do carpinteiro José, “tão belo como um sim / numa sala negativa”.
RIO E HOMEM
Os três poemas compõem um mosaico de um rio que é uma memória, uma paisagem, um sintoma e a materialização dos aspectos da própria humanidade. “As três obras, entretanto, têm o rio Capibaribe como elemento para João Cabral tratar de três temas emblemáticos: uma ontologia do ser humano (Cão sem plumas), uma geografia do leito, como se ele estivesse descrevendo a paisagem sem esquecer do humano (O rio) e uma conotação social (Morte e vida severina) sem esquecer um subtexto que também fala do nascer, viver e morrer de um homem”, sintetiza Susana Vernieri.
O Capibaribe, essa musa de lama, nunca foi tão compreendido – e criado como realidade poética, nesse processo – como nas mãos de João Cabral. Sim, um rio mítico surge das odes e dos épicos, mas um rio de verdade, sem lentes de contato azuis nos olhos, existe no que aflora de seus defeitos, na desmitificação até mesmo da realidade.
Essa desmitificação está presente principalmente através da imagem de homens contaminados por um rio e de um rio contaminado pelos homens. Para Lenise, essa relação entre iguais é construída pelo uso de “metáforas de realidades sociais desvalidas”. “Assim é o rio pernambucano, assim é o homem cabralino ambos sem adornos, conscientes de sua escassez material, no entanto politizados, refinados. No poema Cão sem plumas há os seguintes versos: 'O homem, / porque vive, / choca com o que vive. / Viver / é ir entre o que vive'. Parece-me que isto demonstra o nível de intelectualidade do objeto poético”, defende a pesquisadora, que investiga no seu doutorado os matizes hispânicos na poesia de Cabral.
Ainda há outra lição nesses versos sobre o rio: o poeta pernambucano parece a todo momento provar que não se compõe o Capibaribe só com imagens estanques ou maquinais. Rejeitando tudo isso, Cabral mostra a vida de cada um e de todos como a medida ideal de tudo. Como diria mais tarde no poema De um avião, do livro Quaderna, em que prega a descrição das coisas “da casca para o fundo”, o que resta como elemento máximo – no rio, na cidade, nas touradas – é o homem, “que é núcleo do núcleo do seu núcleo”.