Uma das grandes notícias literárias de 2016 teve como protagonista um músico – o Nobel da Literatura para Bob Dylan. Não é coincidência que o melhor comentário sobre o assunto também veio de outro gigante musical, o cantor e compositor canadense Leonard Cohen, que viria a falecer menos de um mês depois da notícia: ao falar sobre a premiação, disse que o gesto da Academia Sueca era como “dar uma medalha ao Monte Everest por ser a montanha mais alta do mundo”.
Cohen talvez fosse uma das poucas estrelas que poderia se equiparar, em letras e escritos, ao novo Nobel. Felizmente, não é caso de tentar definir se ele seria uma montanha maior ou menor que Dylan, mas de reconhecer a monumentalidade das duas obras. O próprio Cohen fala disso em um poema: “Alguns homens/ deveriam ter montanhas/ para levar o seu nome através do tempo”.
Dois volumes com antologias de letras e poemas de Cohen, lançados agora pela Editora 7Letras, são uma bela amostra da poética do músico de voz cavernosa. Já publicado anteriormente, Atrás das Linhas Inimigas de Meu Amor foi reeditado e ganhou a companhia do volume A Mil Beijos de Profundidade – os dois saem em edição bilíngue com tradução e seleção do poeta e escritor Fernando Koproski. Os volumes, é bom ressaltar, já estavam planejados antes da morte de Cohen.
Sem a presença da voz marcante ou das melodias, é difícil deixar passar (como se a mera audição já não deixasse isso aparente) a beleza dos versos de Cohen. Um breve olhar sobre a vida dele atesta a importância das palavras: desde o colégio, antes mesmo de começar uma carreira musical, ele investiu no ofício da escrita. Já aos 22 anos tinha ganhado um concurso de versos, publicava em revistas literárias e lançava o seu primeiro livro de poesia, Let Us Compare Mythologies (1956). Na obra seguinte, The Spice-Box of Earth (1961), começaria a chamar a atenção da crítica canadense, que o chamaria de “provavelmente o melhor jovem poeta do Canadá inglês da atualidade”. Até o seu último livro, The Book of Longing (2006), publicou dois romances e mais seis volumes de poesia, levando em 2011 uma das grandes premiações literárias internacionais, o Prêmio Príncipe das Astúrias.
Os versos de Cohen são a origem e a extensão de sua música: são alimentados por imagens da mesma natureza, são feitos das mesmas obsessões, soam, como já disse Bob Dylan sobre a música do colega, cada vez mais como orações. Falam sobre o amor, o tempo, o horror, o sagrado, o profano, o belo, o desejo, as perdas e a permanência, como elenca Fernando Koproski na apresentação de Atrás das Linhas Inimigas do Meu Amor.
O músico canadense, ao falar da sua poesia, a descreveu como uma “evidência da vida”. “Se a tua vida alimenta o fogo, a poesia é só a cinza”, afirmou. Para o tradutor, é preciso entender que os versos de Cohen são bem mais do que isso, são, no mínimo, “cinzas luminosas”, incandescentes em suas palavras.
Além de textos restritos ao papel, em várias dessas obras, suas canções apareceram como poemas independentes, antes ou depois de serem gravados. Segundo Fernando, não é uma casualidade. “Isso porque elas também são poemas, visto que se comportam como poemas. (...) Sim, as canções pensam, agem e sentem como poemas, elas sobretudo falam como poemas. E, da minha parte, não poderia traduzi-las, nem imaginá-las de outra forma, a não ser como os grandes poemas que são”, explica no prefácio de A Mil Beijos de Profundidade.
Fernando teve uma missão difícil: se é preciso manter as imagens, as rimas, o ritmo e a fluência nos poemas, nas canções o desafio é ainda maior. As letras ficam incrustadas na mente do ouvinte, e qualquer mínima alteração de sentido (obrigatória na tradução de versos, que é sempre uma reescrita) pode soar estranha. Mas como é bom ler também, em Até Mais, Marianne, “teu corpo está em casa em qualquer oceano” ou “há uma luz nua em cada palavra”, trecho de Aleluia.
De alguma forma, em letra ou poesia, Cohen tem uma poética única, profunda, que permanece em imagens depois de ser lida ou ouvida. Fernando a define como uma “lírica imprescindível, sofisticada e de grandeza única”. Em um trecho de Outro Poeta, o compositor de Hallelujah diz: “Outro poeta terá que dizer/ o quanto eu te amo”. Não, foi Cohen quem soube, de alguma forma, escrever, e cantar esse amor – sombrio, irônico, erótico, transcendente – que tantas outras pessoas sentiram e ainda vão sentir.
Títulos
Tive o título de Poeta
e talvez eu fosse um
por um tempo
O título de Cantor também
estava bem de acordo comigo
embora
eu mal conseguisse sustentar o tom
Por muitos anos
fui conhecido como Monge
eu raspava a cabeça e usava um manto
e acordava bem cedo
Eu odiava todo mundo
mas agia com generosidade
e ninguém me descobriu
Minha reputação
como Sedutor era uma piada
Ela me fez rir amargamente
durantes as dez mil noites
que eu passei sozinho
(...)