Os poderes do mais famoso dos bruxos da literatura, Harry Potter, parecem não ter limites. Ou, no caso, os poderes de quem o criou, a escocesa J.K. Rowling, e o seu dom de Midas – e midiático – de transformar tudo aquilo que toca em ouro. Um fenômeno que, duas décadas e meio bilhão de livros vendidos depois, segue sinônimo de bom negócio para o ramo editorial, muito além das fronteiras de Hogwarts. Não só pela velocidade que num passe de mágica os títulos desaparecem das estantes, mas também pela capacidade de garantir um faturamento extra anual superior a R$ 12 milhões a uma livraria, mesmo sem a venda de um exemplar sequer.
Ponto turístico da badalada cidade do Porto mesmo antes do lançamento do primeiro dos sete livros da série de Harry Potter, A Pedra Filosofal, em 1997, a Livraria Lello testemunhou o número de visitantes sofrer uma aumento exponencial nas duas últimas décadas, após se transformar numa espécie de Meca para a legião de pottermaníacos. Diariamente, faça chuva, faça sol, milhares deles – um milhão de visitantes em 2016 – enfileiram-se diante do belo prédio em estilo neogótico e esperam pacientemente para visitar o local que ganhou fama de ter inspirado J.K. Rowling ao escrever a saga do bruxo.
Construído em 1906, o prédio da Lello lembra um castelo e foi concebido para ser um “templo às artes”. Situado numa região do Porto após a demolição de um convento carmelita – daí o endereço, rua das Carmelitas, 144 – compõe um projeto urbanístico de um novo bairro, erguido no início do século 20, inspirado na belle époque parisiense. O acervo foi adquirido pelos irmãos José e António em 1894, oriundo do espólio de um famoso livreiro e editor local, o francês Ernest Chardron, um bon-vivant amante da mesa e dos livros, que teve a sorte de ganhar na loteria e o azar de morrer aos 45 anos. Até hoje, pode-se ler o nome de Chardron em destaque na magnífica fachada.
Prósperos no ramo editorial, os irmãos Lello não pouparam esforços nem dinheiro para construir a livraria, considerada uma das mais belas – senão a mais bela – do mundo. Para a nova casa, José e António decidiram contratar o engenheiro Francisco Xavier Esteves e outros artistas de renome para erguerem uma obra de arte em cimento armado. “Um prédio que desde o início impressionou muito pela sua beleza arquitetônica”, atesta o gerente de comunicação da Lello, o historiador Manuel de Sousa, um apaixonado pelo passado da “Cidade Invicta”, com direito a um livro publicado por ele, Porto d’Honra, exposto nas imponentes estantes de madeira do local onde trabalha.
Manuel de Sousa explica que a Lello sempre foi um ponto turístico do Porto, mas um fato alheio à vontade dos proprietários mudaria radicalmente o cenário: entre 1991 e 92, a ainda desconhecida e falida Joanne Rowling se instalaria na cidade para trabalhar como professora de inglês, onde viveria uma história breve e intensa de amor, que findaria em casamento, uma filha e um conturbado divórcio. Entre beijos e brigas, a futura escritora começou a rabiscar o manuscrito de A Pedra Filosofal, utilizando cenários e costumes locais para compor a trama. Entre eles, a livraria Lello ganharia destaque, pela arquitetura neogótica, a decoração vintage e as referidas escadas em espiral.
“Apesar de não promovermos, nem fazermos divulgação, os guias e obras sobre a cidade se referem e as pessoas vêm em busca dos indícios da obra de Harry Potter”, salienta Manuel de Sousa. Um frenesi que forçou a administração a radicalizar: a partir de 2015, o acesso se dá mediante a aquisição de um voucher, atualmente ao valor de 4 euros (um pouco mais de R$ 12), que pode ser deduzido integralmente em compras. “Até então, recebíamos milhares de pessoas atrás do mito do bruxo, puxando malas e derrubando os livros das estantes, que não compravam nada e afastavam os clientes tradicionais. Se não tomássemos a medida, não viveríamos como livraria”, explica.
Se a saída reduziu em parte a sanha dos pottermaníacos – apesar do voucher, a Lello superou a casa de um milhão de visitantes em 2016 – garantiu o aumento da receita. “Desde então, se perdemos quem não acha interessante pagar para entrar numa livraria, triplicamos o número de livros vendidos”, contabiliza, satisfeito, Manuel. “Somos a livraria de rua em Portugal que mais vende, cerca de 300 mil títulos comercializados por ano, o que para os padrões portugueses é elevado”, ressalta. A forte presença de turistas estrangeiros garantiu ainda que a casa seja responsável por negociar 20% das obras publicadas em inglês e 70% das em espanhol, no país.
Apesar de não promover a fama, a Lello sabe lucrar com ela. Em várias partes da livraria há nichos com edições dos livros de Harry Potter – o mais especial deles instalado num secular carrinho de madeira que costumava carregar exemplares através de um trilho no térreo da loja – assim como o roteiro da peça A Criança Amaldiçoada, e da nova franquia com assinatura de Rowling, Animais Fantásticos e Onde Habitam. Sem falar em dezenas de itens colecionáveis, como varinhas e talismãs. A escada que leva ao primeiro andar, em formato espiral, é o local mais disputado, tipo ladeira de Olinda durante o Carnaval, com filas se formando à espera de uma brecha para a sacrossanta selfie.
O rush-rush, por sinal, acaba perturbando quem está lá “apenas” para admirá-la. O que não deixa de ser uma pena, levando-se em consideração que a liturgia literária não combina com barulho e movimentação intensa. Mas que não impede ao visitante contemplar uma das mais belas livrarias do mundo, ao lado do Ateneo, de Buenos Aires, e da Selexys, em Maastricht. “Apesar da Lello ser citada junto às duas, é bom lembrar que é a única construída como uma livraria”, cutuca Manuel de Souza, referindo-se ao fato de as concorrentes serem adaptadas, respectivamente, numa ópera e numa igreja, e assim, como um bom português, puxar a sardinha para o lado dele.