Muito do sabor da prosa e da vida de Clarice Lispector está na sua incapacidade de ser completamente capturada. Clarice sempre teve muito mistério, em sua simplicidade e complexidade simultâneas, para ser meramente “compreendida” – o que não impediu que muitos pesquisadores e leitores continuassem a tentar mergulhar na sua obra. Toda aproximação honesta sabe que Clarice era cheia de camadas, todas criadas conscientemente por uma outra Clarice que observava tudo.
Antes de morrer em dezembro de 1977, vítima de câncer no ovário, aos 56 anos, Clarice terminou seu último romance, talvez a sua obra-prima, A Hora da Estrela. Agora, 40 anos depois do lançamento, a editora Rocco preparou uma bela edição comemorativa, com manuscritos inéditos da autora e sete ensaios sobre a narrativa.
Com seu início icônico – “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”– A Hora da Estrela conta a história de Macabéa, uma datilógrafa nordestina recém-chegada no Rio de Janeiro. Mais do que a tragédia da pobreza ou da doença, a sua vida é a tragédia da ingenuidade. E vai além disso: o romance sofre intervenções a todo momento do seu autor, um certo Rodrigo S. M., também outro personagem criado por Clarice.
“O livro tem um aspecto muito interessante. A pesquisadora francesa Hélène Cixous chama atenção para um algo diferente: A Hora da Estrela é o último livro de uma autora que sabe que está fazendo seu último livro. É uma obra que entra na categoria de ‘canto do cisne’”, explica o editor Pedro Vasquez, responsável pela publicação do volume comemorativo.
Para ele, existem várias camadas na narrativa. “O primeiro é a história bonita e triste de Macabéa, uma retirante de Alagoas que vem fugindo da pobreza, dessa categoria que existia do ‘retirante’. Há também o lado de obra literária tipicamente de Clarice. A obra começa a ter vários títulos, que não só não se complementam, como se opõem. Por fim, tem um narrador masculino, que começa falando com o leitor na dedicatória”, comenta Pedro. “Clarice mostra um simulacro desde o início, com um autor escrevendo um livro que se transforma em uma obra também sobre a escrita.”
É Nádia Batella Gotlib que define o volume, num dos ensaios, como “entre o folhetim e a metaficção”. A escritora argentina radicada no Brasil Paloma Vidal foi a responsável pela pesquisa nos manuscritos de Clarice, que revelam a criação dessas camadas – o tal Rodrigo S. M., por exemplo, vai aparecer muito mais na redação final do livro do que nas notas preparatórias.
Além disso, é interessante ver como algumas frases de Clarice surgem em momentos casuais, como a anotação no verso de um talão de requisição de cheques que diz “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda”. “Nestas pastas, há envelopes, papéis rasgados, folhas soltas, este pedaço de talão. Vejo a fascinação que exerce o registro de uma escrita que vem de repente e não pode ser contida. O registro de um instante”, analisa Paloma.
Pedro Vasquez destaca que a preocupação era a de fazer uma edição comemorativa que fossem além das aparências. “Não é só uma capa dura, com projeto gráfico sofisticado. O diferencial é o conteúdo mesmo, com sete ensaios e os manuscritos. A obra dá até ensejo para um seminário sobre A Hora da Estrela, professores e pesquisadores podem usar o volume para dialogar com essas versões complementares. É uma peça de coleção com uso múltiplo”, aponta o editor. Ele ainda destaca que é possível ver, na escrita de Clarice, como a sua letra se deteriorou por conta de uma queimadura na mão.
Além de Nádia e Paloma, o escritor irlandês Colm Toibin é um dos autores dos ensaios presentes no volume. O autor é um dos apaixonados por Clarice, comparando a sua forma de escrever com a de Jorge Luis Borges – ambos teriam “a habilidade de escrever como se ninguém antes houvesse escrito”. “A Hora da Estrela é como alguém ser levado aos bastidores durante uma encenação e ser-lhe permitido espiadelas ocasionais para os atores e o público, e olhares ainda mais intensos para a mecânica do teatro – as trocas de cenas, de figurinos, a criação da ilusão – com muitas interrupções pelos profissionais dos bastidores. Já à saída, ao passado pela bilheteria, deve ser esclarecido em sussurros irônicos, talvez zombeteiros, de que, na verdade, os olhares é que eram o espetáculo”, define.
A francesa Hélène Cixous, fascinada pela Clarice que já “não era mais ninguém sobre a terra”, diz que A Hora da Estrela é um dos “maiores livros do mundo”. “Este livro foi escrito com uma mão cansada e apaixonada. Clarice já tinha de certa maneira deixado de ser uma autora, de ser uma escritora. É o último texto, aquele que vem depois”, escreve.
Florencia Garramuño e Eduardo Portella também trazem análises sobre o furacão A Hora da Estrela. Clarisse Fukelman destaca a singularidade da obra se comparada ao restante da produção de Clarice. “É aqui que a autora aborda de frente o embate entre o escritor moderno, ou melhor, do escritor brasileiro moderno, e a condição indigente da população brasileira. Isto sem deixar de lado – afinal de contas, traz a assinatura de Clarice Lispector – a reflexão sobre a mulher”, avalia.
Se o volume celebra os 40 anos de A Hora da Estrela, Pedro já está de olho nas próximas novidades claricianas. Além da republicação da obra infantil de Clarice, a Rocco vai lançar dois grandes volumes. De carona na aclamação da coletânea Todos os Contos, vai sair em 2018 um volume com todas as crônicas da autora. Em 2020, ano do centenário da autora, terá outra novidade: o livro Todas as Cartas, com a correspondência reunida.