Livro 'Como as Democracias Morrem' é recado importante para o Brasil

A obra dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostra o perigo para a democracia de candidatos que são 'contra tudo o que está aí'
Diogo Guedes
Publicado em 03/10/2018 às 8:15
A obra dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostra o perigo para a democracia de candidatos que são 'contra tudo o que está aí' Foto: Stephanie Mitchell/Harvard


Quando se pensa no fim de uma democracia, substituída por um regime autoritário, o mais normal é se imaginar um golpe de estado repentino ou uma revolução violenta. Essa é a forma mais célebre. No entanto, não é a única, e ainda mais nas últimas décadas, deixou de ser a principal.

O livro Como as Democracias Morrem (Zahar), dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é um daqueles casos de lançamentos na hora necessária. Através de uma pesquisa extensa, a obra mostra que há outra forma de democracias acabarem: lentamente, através de políticos que foram eleitos de fato, com discursos contra a corrupção da classe política, mas que depois, no poder, utilizam (e distorcem) os mecanismos do próprio sistema representativo para miná-lo completamente. Se o contexto brasileiro dos últimos anos já era o de uma polarização política danosa, o período eleitoral só tem servido para trazer mais alarmes – um dos candidatos, Jair Bolsonaro (PSL), elogiou torturadores, fala em minorias se curvarem à maioria e afirmou que não reconhecerá um resultado na urna que não seja a sua vitória; já o programa eleitoral do PT propõe irresponsavelmente a convocação de uma constituinte exclusiva (ainda que, é bom diferenciar, o partido não tenha atacado a democracia nos 13 anos em que esteve no poder).

Ao ler a descrição acima, qualquer um mais interessado em política internacional pode pensar em casos específicos – muitas vezes, de políticos do campo oposto ao seu. Um dos principais pontos da pesquisa de Levitsky e Ziblatt é trazer exemplos de várias origens, mostrando o que se repete e o que há de complexo. A primeira lembrança do livro é nada menos que a ascensão de Hitler, alçado ao poder pelos partidos alemães que acreditavam que a experiência no poder aplacaria o seu extremismo. Como qualquer um sabe, o que se viu não foi isso.

O dado fundamental do livro é que, desde o fim da Guerra Fria, mais democracias foram destruídas através de governos eleitos do que por golpes violentos. “Não há tanques nas ruas. Constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência”, narram Levitsky e Ziblatt. A cada caso de que falam, os autores buscam trazer uma narrativa (sintética, mas muitas vezes elucidativa) de como foi o processo de chegada ao poder dos políticos que eles chamam de “outsiders”, ou seja, pessoas que aparecem de fora do sistema político do país e que questionam o funcionamento vigente do sistema democrático (chamando-o de corrupto ou ineficaz).

Há casos do passado, como Mussolini, Hitler e Perón, mas há a análise da ascensão de vários nomes do autoritarismo recente, como Chaves e Maduro, da Venezuela, Fujimori, do Peru, e Erdogan, da Turquia. O olhar para esses contextos é uma forma principalmente de entender como democracias, algumas delas com um bom funcionamento, podem ser destruídas com a chegada de um outsider. Olhando bastante também para a história política americana, Levitsky e Ziblatt vão revelando o que mantém as democracias saudáveis, impedindo, por exemplo, que potenciais autoritários sejam eleitos para o posto máximo de um país.

Os autores trazem uma tabela importantíssima, uma espécie de “teste do autoritarismo”. São quatro pontos principais, e identificar um deles em um candidato já mostra o risco de estar lidando com um autoritário. Primeiro, Levitsky e Ziblatt falam da “rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)”: se um candidato diz que não vai aceitar o resultado de uma eleição, se menciona golpes e mudanças de governo e se planeja mudar ou violar a constituição sem seguir as devidas regras, ele atende esse requisito.

O segundo, explicam, é a “negação da legitimidade dos oponentes políticos”: falar dos adversários políticos como subversivos e ameaçadores à segurança nacional ou descrevê-los como criminosos ou agentes estrangeiros sem nenhuma fundamentação. O terceiro é a “tolerância ou encorajamento à violência”, vislumbrado na existência de gangues armadas, no incentivo (ou falta de condenação efetiva) a ataques contra oponentes ou no elogio a atitudes violentas de governos e partidos no passado – elogiar torturadores da ditadura militar, como faz Bolsonaro, se encaixa nesse critério.

Por fim, o último elemento da tabela é a “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”. Aqui, Levitsky e Ziblatt falam da ameaça de restrição de liberdade civis, de perseguição com a justiça e o elogio a medidas desse tipo, como a censura, no passado.

REGRAS NÃO ESCRITAS

Boa parte do livro traz esse retrato do outsider autoritário. Desde o início, Levitsky e Ziblatt deixam claro que um dos motivos de analisarem o tema é a vitória de Trump em 2016, um candidato que se anunciou como antissistema, questionou a imprensa e o sistema eleitoral americano e buscou criminalizar a sua oponente de pleito, Hilary Clinton.

Se os capítulos sobre o autoritarismo são bons, quando Levitsky e Ziblatt partem para falar do funcionamento do sistema representativo é que Como as Democracias Morrem fica ainda melhor. Uma democracia é sustentada não só pela sua constituição. “A democracia, claro, não é basquete de rua, porém, regras escritas e árbitros funcionam melhor, e sobrevivem mais tempo, em países em que as constituições escritas são fortalecidas por suas próprias regras não escritas para o jogo”, apontam. Essas regras não escritas se encaixam em dois princípios: a tolerância mútua e a contenção no uso dos mecanismos legais.

A tolerância significa que, mesmo que se discorde de oponentes, um grupo reconhece o direito de se expressarem e existirem politicamente. Se a distância entre a discordância e a guerra já é delicada de definir, a contenção é ainda mais. Significa que um partido não deve usar todos os meios o tempo todo para combater as ações dos opositores. Mesmo que dentro da legalidade, forçar a democracia e a leis até os limites significa barrar o funcionamento normal do sistema representativo.

Nos EUA, Levitsky e Ziblatt exemplificam, isso significa, por exemplo, que as minorias na câmara e no senado não devem obstruir votações o tempo todo. Forçar leis e normas para o seu limite é esvaziá-las e também incentivar a radicalização, que nasce da ideia de que a democracia não é capaz mais de resolver os problemas sociais – desemprego, segurança pública ou corrupção. E vazios da democracia são convites para projetos autoritários.

Pode parecer um pedido vazio pela moderação, mas não é: a democracia mostra sua potência quando não precisa forçar seus limites internos para funcionar. É por isso, para eles, que os partidos são os guardiães da democracia: cabe a eles exercer a tolerância e a contenção e isolar extremistas.

Boa parte do livro parte para pensar a história americana e falar de como evitar outsiders perigosos na democracia – utiliza exemplos bem-sucedidos na Bélgica, Grã-Bretanha e Finlândia. Para evitar candidatos autoritários, partidos precisam negar a ceder sua legenda para eles (o que é um problema no Brasil, com tantas siglas disponíveis) e erradicar os extremistas das suas próprias bases. No processo eleitoral, é importante ainda evitar alianças e isolá-los sistematicamente, sem nunca ceder a tentação de legitimá-los para derrotar um adversário democrático. Para esse último ponto, os pesquisadores lembram que partidos da direita alemã fizeram discursos ao lado de Hitler e depois o chamaram para o governo. Terminaram gestando um dos piores ditadores de todos os tempos. Por fim, os autores ainda dizem que, se um candidato autoritário chega ao pleito com chances, é preciso forjar uma frente única para derrotá-lo.

A melhora metáfora do livro é quando ele fala da democracia como o basquete de rua – seria possível transpor a metáfora para uma pelada de futebol. Existem algumas regras explícitas, mas ainda mais importantes são as regras implícitas. Usar de violência excessiva ou ficar pedindo faltas que não são claras é tornar uma partida uma experiência desprazerosa. Na democracia, também é assim: existe uma disputa, mas ela só é justa e reconhecida quando se sabe que não vale a pena utilizar de todo e qualquer meio para vencer. Afinal, quando se ganha uma pelada de forma injusta sempre, é difícil que os adversários continuem voltando para jogar. O que resta é apenas alguém se autodeclarando campeão.

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