No condomínio de luxo Amaravati, Michi vive com Hana, em meio a aparência do luxo e da felicidade. Segundo romance da trilogia Geronimo, A Estética da Indiferença (Iluminuras) vai ganhar seu lançamento na próxima quinta, às 20h, com uma leitura de Germano Haiut no Teatro de Santa Isabel. Nesta entrevista ao repórter Diogo Guedes, Sidney conta como forjou o romance e fala sobre as indiferenças e teatralidades presentes na obra.
JORNAL DO COMMERCIO – Pelo título, imagina-se um romance sobre a indiferença. De que indiferenças você queria falar?
SIDNEY ROCHA – O título de um romance não é como de um ensaio ou um poema. Tem outra motivação. Ninguém espere que seja discursivo. Feitas essas considerações que mostram certas diferenças, tratemos um pouco de indiferenças. Trata-se de um romance sobre o nosso tempo, e acho curioso que até agora todos os que me indagaram sobre o título ponham sempre ênfase na indiferença e não na estética, talvez porque, mesmo de maneira inconsciente, as pessoas reconheçam que há de fato uma indiferença presente na vida delas e dos que as cercam. Drummond, num poema muito conhecido, afirma de um tempo de partidos, tempo de homens partidos. Este é um tempo de indiferença, tempo de indiferentes, seja qual for o gênero: homem, mulher, homulher, leopardo...
JC – O livro traz personagens que habitam um condomínio de luxo entre a aparência de felicidade e o tédio. O romance é uma tentativa de dissecar – e transformar – os discursos gourmets de hoje?
SIDNEY – Não. Não há nenhuma tentativa de dissecar nada, exceto no caso de um personagem chamado Tomás, que vive de caçar e dissecar muitas coisas. Mas você acerta no alvo quando alcança a indiferença implícita e explícita no como a felicidade aparece retratada e as ideias e ideias de segurança e prosperidade dos que vivem nas prisões de luxo chamadas condomínio.
JC – O romance mostra uma cidade e seus habitantes que mediam tudo através do dinheiro. Em que medida Cromane, “parque temático cujo tema principal é o dinheiro”, é igual às nossas cidades?
SIDNEY – Cromane é o espelho e o retrato de um mundo em que vale mais quem tem mais riqueza. Esta é sua medida. Se o sertão de Guimarães Rosa está em toda parte – mas limitado ao universo rural, claro – Cromane também sofre dessa ubiquidade, com a diferença de que inclui tanto o mundo urbano quanto o rural.
JC – O tédio que permeia o romance várias vezes dialoga com a potencial infidelidade: o romance cita Anna Karenina, Madame Bovary e Dom Casmurro. A infidelidade em Michi, Hana e outros personagens é também um aspecto da indiferença e do tédio?
SIDNEY – Sim, e da complacência moral, prima carnal do relativismo. Não se trata de uma infidelidade cheia ainda de culpa e remorso, como nos personagens que você citou. Chegamos a outro nível, o do cinismo e da hipocrisia ao extremo. E por quê? Porque para todas as Hanas e Michis, tenham ou não esses nomes, vale conquistar e conservar uma boa posição social a qualquer custo, e a fidelidade é mais uma questão do cartão fidelidade de uma empresa do que a lealdade entre as pessoas. No caso destas tudo se resolve num jogo de aparências, dissimulações, relativismo.
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JC – Em Fernanflor, você trouxe um personagem pintor. Em A Estética da Indiferença, o teatro é recorrente. Era um plano para essa trilogia? O que é possível ver da literatura em outras artes?
SIDNEY – Sim, isto estava previsto já no primeiro esboço da trilogia de que esses dois livros fazem parte. Boa a questão que você traz sobre o que é possível ver da literatura em outras artes. Antes de tudo, a narrativa, a literatura é principalmente isto, e assim se projeta no cinema, no teatro, na pintura e em qualquer outra arte ainda por inventar. Isso está nos dois romances. Penso, no entanto, que há um pouco de exagero quando pomos de um lado a literatura, e do outro, as “outras artes”. Os problemas centrais são chamar a atenção do público e emocioná-lo e, se possível, fazê-lo pensar. O que singulariza a literatura é conseguir – ou tentar – a ilusão de reinventar o mundo e as pessoas. Não há virtualidade que a suplante. Quem duvida que D. Quixote seja mais vivo do que Cervantes? No entanto, a Mona Lisa nunca será mais viva do que Leonardo. Quanto mais paixão viva conseguir um artista insuflar no seu trabalho mais literatura haverá nele. Ilusão maior não há.
JC – Falar do teatro também evoca a ideia dos jogos de cenas que as pessoas fazem para viver – fingir felicidades, obedecer a convenções sociais. Escrever é mostrar o que há além, ultrapassar aparências?
SIDNEY – Realmente essa é a tentativa, embora ninguém deva ter a ilusão de que a maioria queira esse tipo de superação. Quase todas as pessoas vivem, no mínimo, duas vidas, e nenhuma delas é de completa verdade. Sem as mentiras haveria muito mais suicídio e homicídio. Quais são as artes da mentira por excelência? A política, a religião e o convívio entre as pessoas. Teatro 100%. Mesmo tirando as roupas das personagens não significa que ficaram sem máscaras. Escrever é parte desse jogo, não uma forma de denúncia, mas de divertimento e aprendizado.
JC – Contra a indiferença, o romance parece trazer em diversos momentos o contraste (ou o consolo) da ironia. O livro é também uma resposta aos tempos e questões que vivemos? Considera que traz termos políticos para ele?
SIDNEY – Não há uma preocupação factual, mas sendo todos os romances os romances de um determinado tempo, é inevitável que as questões mais sensíveis da atualidade apareçam, ainda que nenhum personagem ou fato tenha se “inspirado” na vida real. Mesmo levando isso em conta, a sátira à política e aos políticos e a ironia quanto as relações sociais – incluindo as redes – estão presentes. O que, porém, dá unidade e sentido ao livro é algo mais sutil. Digamos que tentei escrever um romance para os cinco sentidos, e que todos os livros que já escrevi aquele onde a encenação do abismo está mais viva e presente. A Estética da Indiferença é uma peça de teatro.
JC – Fernanflor, do romance anterior, e Geronimo, que nomeia a trilogia inacabada, aparecem no livro. O que o leitor pode esperar da conclusão dessa série de romances, o que pretende trazer no próximo volume?
SIDNEY – Não são muitos os escritores que costumam antecipar detalhes do romance que ainda estão escrevendo. Na verdade, não me vem agora à memória nenhum nome de um autor que haja, mal terminado um livro, anunciar o que o leitor deve esperar do seguinte. Espero que o leitor leia e goste de A Estética da Indiferença, que se sinta Michi, Hana e seus vizinhos tão vivos como se fossem seus vizinhos de qualquer Alfavela ou Alphaville. Além do mais, como os romances não são ciências exatas, felizmente, é possível que modifique muito do já esboçado para a história que fechará a trilogia. Mas, para não parecer uma simples fuga à pergunta, informo que na conclusão da série de romances haverá mais do que o lirismo de Fernanflor e a dramaticidade de A Estética da Indiferença. Será um romance, digamos, mais bruto, mais corpo a corpo ainda com a linguagem.
CRÍTICA
Michi, personagem e narrador em A Estética da Indiferença, pensa em certa passagem que está no inferno. Logo se corrige: “estava em uma cobertura desses edifícios grã-finos”. No condomínio de luxo Amaravati, na cidade de Cromane, um parque de diversão cujo tema é o dinheiro, tudo é um paraíso e um inferno – e será possível mesmo dissociá-los? “Não se trata de termos um estilo de vida: temos é a melhor vida com o máximo de estilo”.
É nessa utopia premium que se passa o romance de Sidney Rocha, obra que continua a trilogia iniciada com Fernanflor (Iluminuras, 2015). Antes de tudo, talvez seja essa a estética de que fala o título: um universo da indiferença, feito de relações mediadas pelo dinheiro, do luxo que se confunde rapidamente com tédio e dos anúncios que vendem apartamentos e produtos padronizados como se fossem exclusivos.Mais uma vez, como no romance anterior, Sidney constrói uma narrativa indissociável de dois aspectos: seu personagem principal e sua linguagem, sempre na contramão da expectativa e termos gastos. Tanto que a trama de A Estética da Indiferença é antes de tudo interna. Michi, que divide a vida com Hana, transita no ambiente aparentemente perfeito e insosso do seu condomínio, tateando seu relacionamento, seus desejos e as vidas de vizinhos e amigos. É impossível não reconhecer nele e em outros personagens aspectos das vidas metodicamente preenchidas para continuarem vazias da nossa época.
Como Michi já foi um professor de teatro, Sidney coloca o romance no centro do jogo de cenas que é a vida. Michi representa o papel amorfo de integrante daquela comunidade. Nos segredos que Hana tem ou não tem, enxerga ainda mais as pessoas como os atores incompletos que são. “Eu sabia, e Hana sabia, de cor, cada um a seu modo, o mesmo texto: estamos vivendo papéis cada vez mais duros de representar. Todas as suas deixas são dolorosas e remetem a mais significados que meu corpo pode suportar em cena”, pondera. Se em Fernanflor a narrativa mergulhava no mundo da pintura, o teatro é tema subterrâneo e constante na nova obra.
A relação entre Michi e Hana é complexa, com dimensões afetuosas e mornas. Enquanto busca compreender Hana e se entender, o personagem não esconde o seu desejo por outras mulheres. Estranha ainda o vizinho que cria porcos e os executa friamente com uma arma. Também vê as pessoas mais ricas de Cromane falarem com desprezo dos pobres e imigrantes.
Na biblioteca do casal, os livros trazem histórias diferentes; A Ilíada, por exemplo, não passa pela destruição de Troia. São “versões revistas e muito melhoradas” de títulos como Madame Bovary, Dom Casmurro e Anna Karenina, despidas do aspecto trágico. Além disso, a infidelidade e a insatisfação, temas constantes das três obras, se desdobram em Michi e Hana. “Talvez o segredo do nosso casamento seja o fato de ela não ser boa nem má, nem rica nem pobre, nem bela nem feia”, reflete Michi.
Sidney ironiza em diversos momentos o nosso mundo, ao citar, por exemplo, o restaurante Farsano ou recriar uma briga do passado do Teatro de Santa Isabel. Além disso, A Engenharia da Felicidade é o nome de um dos livros que circulam em Cromane. E A Estética da Indiferença ressalta bem o custo da felicidade na era das aparências: “Nenhuma felicidade autêntica pode prescindir de narcisismo, exibicionismo ou voyeurismo”.