Mais do que a literatura, o poeta João Cabral de Melo Neto considerava a pintura a principal das artes. Isso se refletia na sua vida, na sua relação com artistas e no gosto pela publicações artesanais da sua editora O Livro Inconsútil, mas revelava mesmo na sua amizade com o pintor catalão Joan Miró. A sua chamada “poesia crítica” várias vezes trouxe artistas, poetas, cantantes, toureiros como objetos de análise do impronunciável da arte, mas Miró foi um caso à parte. João Cabral escreveu, em 1950, um ensaio mais longo sobre a obra do amigo, publicado em Barcelona com três gravuras exclusivas que o pintor fez para o volume.
Joan Miró foi editado no Brasil em 1952, pelo MEC. A versão, no entanto, não trazia as gravuras, que só foram apresentadas por aqui na bela edição da Verso Brasil, com organização de Valéria Lamego, lançada agora no final de 2018. A editora foi a responsável por publicar o belo fac-símile de Aniki Bóbó, livro de João Cabral com Aloísio Magalhães.
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Em Joan Miró (R$ 94,80), eles trazem o ensaio denso do autor pernambucano, as gravuras de Miró, um ensaio fotográfico feito pelo impressor e fotógrafo do pintor, Enric Tormo, além de textos da própria Valéria e do professor da USP Ricardo Souza de Carvalho.
O encontro entre João Cabral e Miró é singular. O poeta tinha apenas 27 anos e trabalhava como diplomata em Barcelona em 1947. Miró, então aos 53 anos, já era um artista prestigiado, e enfrentava a perseguição da ditadura de Franco: passaria décadas sem poder expor – o fato de João Cabral ser um diplomata, figura longe do alcance da repressão, permitiu a amizade se estreitar.
No ensaio, João Cabral aborda como Miró desconstrói elementos estabelecidos dos quadros que vigoravam desde o Renascimento. A recusa da ilusão da tridimensionalidade em uma tela, que outros artistas também vão trazer, vira em Miró uma oposição a ideia de “equilíbrio”. “O que Miró perece ter pretendido será impossível dizer. O que Miró obteve foi uma desintegração da unidade do quadro”, escreve.
Para ele, Miró vai na contramão da “automatização da sensibilidade”. Mesmo quando pinta elementos que reconhecemos no quadro, os faz de forma singular: suas luas e estrelas são “pintadas absolutamente puras de outras representações de luas ou de estrelas”. Miró, assim, transforma o processo de criação em um modo de reinvenção de cada etapa da sua pintura. “O trabalho de criação de Miró, eu o imagino como o de um homem que para somar 2 e 2 contasse nos dedos”, define.
EDIÇÃO
Valéria conta que a ideia de editar o volume veio de uma conversa com um amigo colecionador, que mostrou as gravuras originais e inéditas por aqui. A partir daí, ela pegou a autorização da família do pintor e também do herdeiro de Enric Tormo. “Esse é um ensaios de um poeta sobre um artista. É um ensaio personalíssimo, não é o texto de um crítico de arte. E João Cabral continua esse ensaio de certa forma: em Serial, ele escreve sobre Miró em um poema”, aponta.
Para Ricardo, o texto ilustra um momento subestimado da trajetória de João Cabral, quando o poeta, por impasses na sua poesia, passou pela tipografia, tradução, edição e ensaio.
Vale notar também que o que João Cabral observa em Miró parece ser também o que busca na sua poesia: fugir da automatização das sensibilidades, não seguir os caminhos já estabelecidos. No poema O Sim contra o Sim, ele conta que Miró achava sua mão direita “demasiadamente sábia” e passou a desenhar com a esquerda. “A esquerda (se não se é canhoto)/ é mão sem habilidade:/ reaprende a cada linha,/ cada instante, a recomeçar-se”, apontou. Para João Cabral, Miró era essa imagem da arte que recomeça a si mesma, abandonando as próprias amarras.