Tom Gauld reinventa a história do gigante Golias em HQ

O quadrinista escocês reconta a história bíblica do ponto de vista de um gigante que não deseja lutar em 'Golias'
Diogo Guedes
Publicado em 08/07/2019 às 11:07
O quadrinista escocês reconta a história bíblica do ponto de vista de um gigante que não deseja lutar em 'Golias' Foto: Imagem: Tom Gauld/Divulgação


O confronto entre Davi e Golias é umas da mais famosas histórias bíblicas. O guerreiro gigante é enviado pelos filisteus para propor um desafio: os seus inimigos, os israelistas, deveriam enviar um campeão para enfrentá-lo, e a guerra então seria decidida nesse confronto. Davi, um simples pastor, se apresenta para o combate, apesar da desconfiança do rei Saul. O final é conhecido: com o disparo de uma única pedra, ele derrota o gigante, para surpresa de todos.

Como em toda narrativa – inclusive as mais célebres –, é sempre possível imaginar essa trama por outro ponto de vista. O quadrinista escocês Tom Gauld, dono de um dos traços mais famosos e pessoais das artes gráficas autorais, imagina o desafio pelo olhar do gigante no livro Golias. Editada no Brasil pela Todavia, a obra é não só uma pequena preciosidade das HQs recentes como uma oportunidade rara de conferir o trabalho do autor em português.

Gauld fez seu nome em jornais literários estrangeiros e na internet. Muitas de suas tirinhas e cartuns brincam com o universo do processo criativo – várias vezes, da criação literária em si. Uma de suas principais obras é You’re All Just Jealous of My Jetpack (Você Estão Apenas com Inveja da Minha Mochila a Jato, em tradução livre), com pequenos trabalhos em que brincam com pormenores dos livros. De James Joyce a Jane Austen, o cardápio de referências é amplo. A inveja citada no nome da série, por exemplo, é uma forma de ironizar a oposição da literatura mais realista – que vê a si mesma como mais séria – às obras imaginativas, que se permitem novos mundos, extraterrestres e, claro, mochilas a jato.

Golias, assim, é também um intertexto, que funciona em diálogo – sempre subvertendo expectativas – com a história anterior. Aqui, o personagem-título é sim um gigante, mas não um guerreiro: ele mesmo diz que é o quinto pior espadachim do seu batalhão. É o seu tamanho que faz alguém ter a ideia de propor o desafio, afinal, quem ousaria aceitar lutar com alguém tão grande, coberto por uma armadura?

Nesse Golias melancólico, que prefere o trabalho administrativo, o quadrinista compõe um personagem curioso. O gigante dócil não quer lutar com um urso, não quer batalhar com um desconhecido: ele é um pouco como um estranho em meio à guerra, um homem fora da sua época. Mandado para um vale para todos dos dias repetir o texto desafiador, sua única companhia frequente é seu jovem e pequeno escudeiro, um garoto prestativo e curioso.

TRAÇO E TEXTURAS

O traço de Gauld é delicado, sintético, transformando figuras humanas e paisagens, quando mostradas a distância, em quase formas geométricas. Ainda assim, seus desenhos são o oposto da concretude: são fluidos, se colocam no mesmo tom que o humor e melancolia da narrativa. A grande arte do quadrinista, no entanto, está em sua forma de usar texturas detalhadas dentro de uma paleta de cores reduzida. É com muitos poucos recursos – mas com uma sabedoria imensa ao usá-los – que Gauld constrói personagens e paisagens deslumbrantes.

A história de Golias tem a mesma essência da versão famosa, mas, ao reinventar o personagem com proximidade, Tom Gauld dá outra densidade a ela. Não se trata mais da narrativa de um povo e um personagem escolhido, mas a de um homem diante de um cenário de guerra e destino que lhe soa absurdo (porque, olhando bem, na verdade é). Enquanto repete todos os dias o seu desafio para um vale vazio, Golias parece se adequar àquela solidão.

Por fim, se a vitória de Davi é normalmente contada como o triunfo da astúcia diante da força bruta, o autor parece querer intuir outra moral no seu quadrinho. Não é necessariamente a forma de vencer que importa: vale mais refletir porque parece tão importante subjugar os outros, ou seja, porque a maioria aceita o conflito como um destino, e não uma escolha.

TAGS
Tom Gauld
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory