“Nunca escrevas um poema se/ ele não for mais breve que/ a subjetividade que o envolve”, vaticina um dos textos do livro Vácuos, finalista da última edição do Prêmio Oceanos. Escrito pelo poeta e médico moçambicano Mbate Pedro, o volume ganhou, durante a Flip, a sua primeira edição brasileira, publicada pela Cepe. Nesta entrevista, Mbate fala sobre a poderosa obra, descrita como um “enfarte da alma”, e o pouco, mas crescente, diálogo entre os países lusófonos.
JORNAL DO COMMERCIO – Mbate, Vácuos traz uma poesia algo angustiada, mas também amplamente sensível e densa. De que momento e de que contexto nasce esse livro tão lírico e, ao mesmo tempo, duro?
MBATE PEDRO – Este livro é primeiro o resultado das várias influências que a minha escrita tem tido ao longo do meu curto trajecto literário. Por exemplo, a parte mais lírica dela, vem da força lírica que há na poesia de um Eduardo White (belíssimo moçambicano) e Eugénio de Andrade (poeta português). Por outro lado, uma boa parte da força telúrica da minha poesia, julgo vir de um José Craveirinha (nosso maior poeta), Luís Carlos Patraquim (Prêmio Oceanos 2018), Gamoneda, Gullar, Herberto Helder, etc. A verdade é que este livro, sem querer ser algo panfletário ou uma mera denúncia, reflete estes tempos difíceis em que vivemos: o tempo do homem plástico, desprovido de valores morais e enclausurado dentro de si mesmo. O tempo do homem angustiado e acometido por depressão e, o que lhe resta, em jeito de boia de salvação, é ele empreender-se, penso eu, na busca do amor, do amor de si mesmo e dos seus, e neste cenário, acredito que a literatura no geral, e a poesia em particular, desempenharão um papel importante (é essa a função da arte) na rehumanização do homem, devolvendo-lhe o amor às coisas belas.
JC – As ideias de morte, de vácuo e de abismo são recorrentes ao longo dos poemas. É uma reflexão sobre o próprio estado de si e o próprio destino, como poeta e como pessoa?
MBATE – Os temas da grande literatura não variam muito: o amor, a morte, a angústia, etc, termos que na essência definem a condição humana. Depois cada um de nós tem um estilo próprio para abordar essas preocupações. Neste livro, em particular, o que me interessou mais é o de fazer um trabalho com a linguagem, para através dela e com ela, tratar do enfarte da alma, usando a morte não para celebrá-la, mas para exorcizá-la.
JC – A sua poesia coloca o leitor em meio a sua própria criação, como já sugeriu Juvenal Bucuane. Interessa a você fazer da escrita também um jogo?
MBATE – Quando inicio um livro, nunca tenho a certeza no que vai dar no fim e isso é das coisas mais belas que a literatura me tem oferecido. Posso, entretanto, ter uma vaga ideia. Por outro lado, sei que quando eu terminar o livro, haverá um leitor algures, distraído, que há-de pegar nos meus gatafunhos e dar-lhes algum sentido. E esse é o maior prêmio que um aprendiz de escritor como eu pode ter: o de ser lido. Daí que eu esteja consciente de que sem leitor não existe literatura.
JC – Como é ser um escritor em Moçambique hoje? Como avalia o cenário literário do país?
MBATE – Moçambique tem uma tradição poética forte e vive hoje uma renovação literária (mais na poesia do que na prosa, é verdade) que nenhum outro país africano de língua portuguesa conseguiu fazer. E arrisco a dizer que temos, provavelmente, a geração mais profícua, pontificando escritores tão inovadores como um Andes Chivangue, Sangare Okapi na poesia e um Lucílio Manjate, Aurélio Furdela, Rogério Manjate e Hélder Faife na prosa, só para citar alguns exemplos. É então urgente que o leitor do Brasil tenha acesso à esta literatura de boa qualidade. Alguns deles já começam a ser editados e estudados aqui no Brasil, mas há ainda um certo ostracismo e desconhecimento da crítica acadêmica e jornalística em relação às obras da maioria destes autores. E continua a haver um desprezo e distração dos editores, principalmente em Portugal.
JC – O Brasil tem começado, ainda que tardiamente, a se abrir mais para a literatura em português feita fora daqui e de Portugal. Você tem sentido um interesse crescente, uma abertura?
MBATE – Sim, é inegável que nos últimos anos há cada vez mais autores moçambicanos a serem editados por editoras brasileiras (mas o número é ainda insignificante), principalmente nas pequenas editoras, que têm tido, a meu ver, uma maior sensibilidade à qualidade literária dos escritores dos países africanos de língua portuguesa. Repare que há também uma maior participação nossa, principalmente da geração a que pertenço, nos mais importantes encontros de escritores de língua portuguesa, tanto aqui como em Portugal. E isso é bastante positivo, pois, durante muito tempo, foram sempre um ou dois escritores moçambicanos, os únicos a serem editados aqui e a participarem em todos os eventos literários fora do país, como se fossem os únicos representantes de toda uma literatura rica e heterogênea. E sabemos todos quais são os perigos desse tipo de hegemonia literária. Mas há ainda um longo caminho a percorrer. Por exemplo, as editoras portuguesas ainda têm muita dificuldade em editar outras vozes literárias, fora das habituais, não obstante a inegável qualidade dessas novas vozes, quer através das escassas recessões críticas das suas obras, assim como pela frequente participação e arrecadação dos mais importantes prêmios em Moçambique, aqui no Brasil e em Portugal. Portanto, sim, há uma maior abertura do Brasil, que também resulta da existência actualmente de uma geração de escritores moçambicanos com excelente qualidade e isto é uma factor de pressão. Agora, falta ainda um maior envolvimento institucional. Por exemplo, preocupa-me a falta de proactividade da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). E falta ainda uma política literária clara para ela. O maior desafio que enfrentamos é a circulação dos nossos livros no espaço lusófono. Os livros editados em Angola não chegam a Moçambique. Os livros dos escritores brasileiros não circulam em Cabo Verde. Isto é, o centro não vai a periferia, e esta não chega ao centro, ou quando chega tem enormes dificuldades de se impor. Por exemplo, as poucas publicações que têm surgido ultimamente, tanto de autores moçambicanos no Brasil, assim como de autores brasileiros em Moçambique, são mais iniciativas privadas do que o resultado de uma estratégia das instituições literárias dos nossos países ou da CPLP.
Um dos trechos de Vácuos parece um conselho para si mesmo, um aprendizado doloroso e, por isso, também essencial: “não entres no passado sem os frutos da tua derrota”. Os poemas de Mbate Pedro nesse livro são densos, incômodos e preciosos como as grandes lições da vida, as derrotas mais dignas. É esse lirismo poderoso, sóbrio diante do próprio abismo, que merecidamente chamou atenção dos jurados do Prêmio Oceanos, que o elegeram como um dos dez melhores de toda a língua portuguesa em 2018.
Só publicado até então em Moçambique, o destaque na honraria brasileira fez o livro chegar até a Cepe Editora – um encontro feliz em um momento em que o Brasil finalmente diversifica a oferta de obras de países africanos por aqui. Uma primeira parte de Vácuos se dá sobre o signo da finitude. “Mas eu recuei na minha morte/ porque me era estrangeira e inumana”, aponta o poeta, numa prosa reveladora e opaca ao mesmo tempo. “E eu desamparado desacerto/ carrego-te como se carrega um morto”, continua mais tarde. Em suas reflexões, Vácuos conversa consigo mesmo e com os leitores, como se a solidão fossem um conceito melhor entendido em diálogo.
Cada poema é composto de vários trechos curtos, que se complementam em sentido em clima. Logo no começo, o livro aconselha: “não te afogues/ no interior das coisas que ardem”. Também questiona: “que sabes tu da vingança?/ de onde pensas que surge a escrita?”. Ao escrever sobre o amor, é lírico e cético, como se reconhecer a dor do sentimento não justificasse descartá-lo. “E tudo cai a pique agora para que intacta só tu permaneças”, diz, e continua depois: “a verdade é que o amor é a ferida ferindo a outra ferida que jaz dentro”. Em uma linguagem quase insone, entre o absurdo e o mais íntimo, Mbate faz de Vácuos um livro belo e poderoso, que, usando os termos de um poema seu, sabe “demorar as palavras na mão”.