Carlos Gomes apresenta o livro e o show 'Canções Não'

Com textos criados ao longo de cinco anos, a obra será lançada no sábado (24), no Teatro Hermilo Borba Filho
Diogo Guedes
Publicado em 22/08/2019 às 11:02
Com textos criados ao longo de cinco anos, a obra será lançada no sábado (24), no Teatro Hermilo Borba Filho Foto: Foto: Eric Gomes/Divulgação


Mesmo no seu título, o livro Canções Não traz uma pulsão negativa. Destruição, lama, escuros e soterramentos são parte do vocabulário poético da obra do escritor, crítico e músico pernambucano Carlos Gomes, que parece tentar rodear, em diferentes olhares, corpos e vozes, o desolamento da cidade e das pessoas hoje. “Eu preciso escrever/ não viverás nenhum país como este”, aponta em um dos textos da obra, que será lançada neste sábado (24) junto com um show.

O evento acontece a partir das 18h, no Teatro Hermilo Borba Filho, com entrada gratuita, apresentação de Carlos (voz e violão), Hugo Linns (viola dinâmica) e Rogê Victor (baixo acústico) e participações de Jomard Muniz de Britto, Nathalia Queiroz e Philippe Wollney. No mesmo dia, será disponibilizado o disco Canções Não, com músicas baseadas nos textos do livro – os dois projetos contam com apoio do Funcultura.

Nesta entrevista ao JC, Carlos comenta a criação do livro, os diálogos estabelecidos com autores como Jomard Muniz de Britto e Fabiana Moraes e a experiência de transformar texto em música.

ENTREVISTA

JORNAL DO COMMERCIO - Carlos, qual a pulsão inicial dos poemas de Canções Não, que começaram a ser criados ainda em 2015?

CARLOS GOMES - Canções Não é o meu quinto livro solo. Classifico assim pois não estou contando com os livros dos Outros Críticos. Cada livro levou em média três ou quatro anos para ficar pronto. No entanto, entre 2015 e 2019 eu lancei quatro desses livros. Em circunstâncias distintas, mas com muito diálogo entre eles: um gosto por deslocar as categorias e gêneros artísticos, com sutis procedimentos estilísticos; uma abertura para revelar-se ainda como "work in progress"; a relação mais próxima com outras obras e artistas; enfim, digo tudo isso para afirmar que não existiu uma pulsão inicial propriamente dita para a produção dessa obra. Nesse exercício crítico que você me propõe, de olhar em perspectiva para o processo de criação desse novo livro, percebo, ou pelo menos intuo, que há sim uma pulsão, mas se trata de uma pulsão permanente que é contaminada por obras muito diversas e, num momento nem sempre previsível, o fio desse novelo começa a ficar mais nítido para mim; é quando enxergo que há um novo trabalho a ser experimentado e formatado nos padrões que a gente já conhece: o livro, o disco, o espetáculo etc. Em Canções Não isso aconteceu quando compus uma melodia para os poemas “uma máquina” e “sobre nós”, como se fossem uma única canção, e passei a repetidamente cantá-los assim, em sequência, um poema em diálogo com o outro. Isso transformou o livro que eu achava que estava fazendo. Ainda não sabia no que iria dar, mas já imaginava que de alguma forma eu iria ser transformado por esses poemas cantados, falados, performados. Ou como digo num dos poemas, “meu coração erva daninha/ [...] quer cantar/ cartografar o canto vivo”.

JC - Os textos trazem uma espécie de canções tentadas e canções impossíveis sobre uma cidade e os corpos que a compõem, constroem e destroem. Acredita na urgência de cantar esses elementos nos tempos de hoje?

CARLOS - A arte tem essa capacidade fabular de lidar com o tempo de modo muito elástico. O sentido do que é contemporâneo não pode ser definido por datas ou limitações estéticas de qualquer tipo. Mas diante de ataques sucessivos e muito bem direcionados de um presidente da república e o seu consequente governo de extrema-direita a pessoas que trabalham nas áreas da cultura, educação e pesquisa, para ficar apenas em três lugares por onde venho circulando mais diretamente, é claro que há uma vontade muito grande em devolver a estupidez dessa turma com criação e invenção, mas desejo que a ‘arte como arma de combate’ possa ainda ser contemporânea a ‘urgências’ que surgirão daqui a 50, 100 anos. Tenho esse desejo ingênuo de que a arte perdure circular pelo tempo. Um disco como Besta Fera, de Jards Macalé, por exemplo, é desse tempo nosso, mas tem diálogo com o seu primeiro disco dos anos 1970, de algum modo, modifica a nossa escuta sobre ele, e provavelmente modificará a nossa percepção sobre obras futuras e, sobretudo, “urgências futuras”. Assim, o poeta que canta a cidade, os corpos desterrados, canta também o que é extemporâneo.

JC - Canções Não também é um livro de múltiplas vozes, imaginando olhares mais fragmentários. A cidade também é esse caos e essa pluralidade para você?

CARLOS - Há uma crise dentro do livro sobre cantar o Outro. Há um verso da seção “testemunho” que diz: “nunca mais cantarei a canção política sobre o outro”. Essa é uma virada do livro, a meu ver, que até agora não está resolvida dentro de mim. Na verdade, nem sei se conseguirei resolver. Eu tenho uma admiração profunda pelo modo como a jornalista-escritora Fabiana Moraes se aproxima das personagens que fazem parte de seus livros-reportagens. Até essa designação “personagem” pode ser problemática, mas nos livros dela isso se resolve por meio da linguagem, da escrita, do que o outro fala, do que ela põe em evidência, no que ela decide jogar mais luz, mais força. Então, eu modestamente tento me aproximar desse gesto, que é escutar a voz do outro tendo a clareza de que a minha voz nunca será a voz do outro. Não sei se fui muito claro, mas em relação à cidade isso também está presente. A cidade cantada em “Canções não” é um espaço fraturado, disforme, apenas uma pequena e ínfima peça; não tenho a pretensão de ter inteireza, principalmente numa cidade tão complexa e cheia de nuances quanto Recife.

JC - O livro tem várias homenagens e referências – a principal é para Jomard Muniz de Britto. Considera um livro um diálogo com outras obras e pessoas?

CARLOS - Acredito que é mais um diálogo através de intertextos, citações, colagens, entre outras formas de diálogo. Eu não tenho a pretensão de homenagear Jomard, pois ele, apesar de ser digno de todo o tipo de homenagem, continua produzindo os seus poemas, os seus atentados poéticos, e o faz pelas ruas, como arte de rua mesmo, num sentido mais profundo dessa expressão, que muitas vezes é tomada de forma muita fechada. Então, eu acho que o meu trabalho, sobretudo as Canções Não, apresentam uma conversa e uma espécie de ininhado crítico e poético com a obra de Jomard, sobretudo a sua poesia. Arrecife de Desejo é um livro de 1994 que tem uma relação mais direta, através dos versos “ó cidade faminta/ alimentando-se de letras de canções”, mas que se expande na própria persona de Jomard, no modo como ele lida com a poesia enquanto linguagem, presente nos atentados, mas também em sua voz, em seu corpo, em seu gestual. Por isso que achei muito importante registrar a voz de Jomard num dos poemas. Eu queria ter próximo de mim essa memória de invenção permanente, absorver um pouco dela.

JC - Você também transformou os poemas em disco e em um show. Como é de fato cantá-los, ver os textos em outro formato? É uma fruição diferente também para o público?

CARLOS - Ainda vai ser uma descoberta essa relação entre livro, disco e espetáculo. Os músicos Hugo Linns (direção musical, viola dinâmica e arranjos) e Rogê Victor (baixo acústico) que estão comigo no disco e no espetáculo só vão ter contato com o livro agora. Eu achei que a gente devia trabalhar de forma mais intuitiva, a partir das faixas que eu mostrava para eles, sem ter o todo do livro para contrapor. Nesse sentido, o disco e o espetáculo são mais desdobramentos. Provavelmente encontrarei pessoas que lerão o livro e nem saberão da existência do disco, ou o contrário. É claro, quanto mais a pessoa se aprofundar nas “Canções não”, tendo contato com o livro, disco e espetáculo, mais relações ela pode estabelecer. É o que desejo que aconteça.

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