Foram seis anos de trabalho meticuloso, que incluiu visitas a 12 países na África, Europa e América do Norte, além da leitura de quase 200 livros. Um esforço que faz parte do estilo de Laurentino Gomes, jornalista que se tornou best-seller ao publicar uma trilogia (1808, 1822 e 1889) que mapeou os principais eventos históricos do Brasil no século 19. Agora, ele inicia outro projeto triplo, que se inicia nesta sexta-feira, 23, com a chegada do livro Escravidão (Globo Livros). É o ponto de partida de uma viagem que continua no próximo ano, com a publicação do segundo volume, e termina em 2021, quando deverá sair o último tomo.
Trata-se do mais importante fato histórico do País, no entender de Laurentino. "Não é possível entender o Brasil de hoje e do século 19 apenas mirando a relação com Portugal, do ponto de vista social, burocrático, administrativo, legal", comenta ele. "Existe uma dimensão mais profunda do código genético brasileiro que é a raiz africana - claro, tem a origem indígena, mas o Brasil matou um milhão de índios nos três séculos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. É preciso lembrar que foram importados 5 milhões de cativos africanos. Esse foi o motor da construção do Brasil até o século 19, pois todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana de açúcar, ouro, diamante, tabaco, charqueadas, algodão, café) foram movidos por trabalho cativo. A construção dessa África brasileira é onipresente, pois até em regiões predominadas por colonização europeia, como Santa Catarina, têm hoje repercussão da presença africana."
De fato, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental durante quase três séculos e meio: sozinho, o País recebeu quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América em cerca de 35 mil navios negreiros. Por conta disso, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo.
"A escravidão é o tema mais importante da história do Brasil", pontua Laurentino. "Tudo o que já fomos, o que somos e o que seremos se relaciona com nossas raízes africanas, mas também com a forma com que nos relacionamos com essas raízes. A escravidão está presente hoje, seja nas estatísticas (na baixa renda, na dificuldade de moradia, no fato de constituir a maioria na população carcerária, no detalhe de hoje não existir nenhum ministro ou senador negro), mas também na forma de preconceito: nas redes sociais, é possível ver manifestações de racismo como nunca julguei que veria na minha vida."
Em um dos capítulos do livro, Laurentino lembra que escravidão não se resume ao período de tráfico de cativos africanos. "Onde houve ser humano, houve escravidão. O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana", afirma. "Começou, aliás, no livro do Gênesis, quando José é vendido pelos irmãos como escravo para o Egito. A escravidão está enfronhada na forma de o homem se relacionar. E nem sempre a cor da pele determinou a condição de escravo: até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era branca. A palavra ‘escravidão’ vem de ‘eslavo’, povo branco, de olhos azuis, do leste da Europa, que eram escravizados aos milhões desde o império romano na bacia do Mediterrâneo."
O escritor nota, porém, que a escravidão africana é distinta por dois motivos. Primeiro porque antes não se associava escravidão à cor da pele. "A ideologia racista tem um fundo bíblico, novamente no Gênesis, quando Cam, filho de Noé, que riu ao ver o pai dormindo nu, foi amaldiçoado e seus descendentes, como o filho Canaã, foram condenados a serem escravos de seus irmãos. O mito diz que foram enviados à África, onde se tornaram negros e com a condição natural de escravos."
Segundo porque a escravidão africana aconteceu em escala industrial, quando milhões de cativos vêm para a América executar trabalho forçado. "Devo usar como epígrafe do segundo volume a frase de um fazendeiro do século 19 que dizia que América triturava os negros."
Laurentino destaca ainda as distintas formas de se observar a abolição da escravatura, ocorrida em 1888 com a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea. "Esse é o olhar branco, que celebra a vitória da elite contra a barbárie - aquele século 19 foi marcado pelas resoluções humanitárias e havia uma mancha sobre a imagem do Brasil por ser o último país da América a determinar o fim do tráfico negreiro. Para melhorar nossa imagem no mundo civilizado, é promovida a abolição em 1888."
O escritor lembra que havia vários projetos, discutidos abertamente no parlamento e na imprensa, de branqueamento do Brasil, como se o sangue negro manchasse a forma como a sociedade nacional tinha se constituído. "Sou herdeiro desse projeto: meus bisavós italianos, brancos, católicos, vieram para cá no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo - tentativa de branqueamento do Brasil."
O primeiro volume da trilogia termina falando de Zumbi dos Palmares, líder quilombola, um dos pioneiros na resistência contra a escravidão, morto em 1695. "Na verdade, ele continua vivo por capitanear uma guerra pelo calendário cívico brasileiro: há o 13 de maio, data da Lei Áurea, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data da morte do Zumbi. Um é o olhar branco da vitória contra a barbárie, e a outra é a luta negra contra o escravismo."