O episódio evidencia um longo movimento de renovação do pancadão, que se hibridiza com um amplo repertório de gêneros, especialmente a música pop e eletrônica. Os vocais de Bin Laden evocam uma levada de rap, enquanto a batida é erguida a partir de sons guturais ou estranhos (como um cachorro ganindo em Sem Querer Pisei no Cachorro). Delação Premiada, novo single da MC Carol, com produção de Leo Justi, é marcado por uma batida de trap, vertente da música eletrônica. O MC TH sampleou a música Blame, do DJ britânico Calvin Harris, em Aproveita Que a Mamadeira Tá Cheia, e, do Red Hot Chilli Peppers, em Vidro Fumê. Já Ludmilla, Valesca Popozuda e os novos trabalhos de Tati Quebra Barraco se conectam à uma linguagem e imagética mais pop.
Não é de hoje que artistas estrangeiros (especialmente da música experimental ou de vanguarda) se interessam pelo funk. Em 2007, por exemplo, o americano Alan Bishop, guitarrista da banda experimental Sun City Girls, compilou faixas de proibidões das facções criminosas no álbum Proibidao C.V: Forbidden Gang Funk From Rio De Janeiro. Ao discotecar em uma balada de Nova York, ano passado, a islandesa Björk tocou a música Sabe Que Dia é Hoje?, do MC 7Belo e MC Brinquedo.
Skrillex é outro fascinado pelo som do pancadão. Ele incluiu a música Haha Bololo, de Bin Laden, na playlist Skrillex Select, onde o DJ recomenda faixas que tem ouvido e também fez um remix da canção, que incluiu em seu setlist. Em março deste ano, Bin Laden fez uma ponta no Lollapalooza no show do Jack Ü (dupla formada por Skrillex e Diplo) cantando Tá Tranquilo, Tá Favorável.
Agora os DJs brasileiros começam a incorporar elementos do funk e misturá-los com os sons eletrônicos graves, numa ponte entre a cultura da favela e as festas brancas. Assim surge um novo subgênero: o Brazillian Bass, que tem entre os principais expoentes os cariocas Leo Justi e Omulu e a paulista Bad$ista.
Justi é o produtor de
Não Foi Cabral e
Delação Premiada, singles que apresentaram uma nova roupagem da MC Carol, mais bem produzida e com letras politizadas –
Delação é uma crítica à violência policial na periferia. Ele também é o organizador da festa Heavy Baile, sensação entre jovens de classe média no Rio e São Paulo e que em agosto faz uma turnê pelo Nordeste,
incluindo o Recife, no dia 12. Ano passado, ele lançou
Vira a Cara, o seu primeiro EP, com participação do MC Tchelinho em duas das cinco faixas. O produtor explica que a ideia de misturar funk com EDM (música eletrônica dançante, em inglês) surgiu ainda na escola.
“Estava rolando a febre do Bonde do Tigrão, dos melôs. Nessa época fui na onda nos meus amigos roqueiros que achavam funk algo inferior, saca? Quando cresci e comecei a sair é que entendi qual é a do baile e me apaixonei. A essência mais básica do que é o Heavy Baile já existe de antes de mim, com outros nomes, no trabalho de caras como Edu K, Chernobyl e Comrade DJ. Eu cheguei uns anos depois, o que inventei foi só o termo (Heavy Baile). Tenho meu estilo como cada produtor tem o seu”.
Com a Heavy Baile, Leo Justi faz a ponte entre a favela e a classe média e dá nova roupagem aos MCs da periferia. Foto: Divulgação.
Justi enxerga que hoje há um maior propriedade técnica e domínio da linguagem e produção. “Vale diferenciar o funk de SP e do Rio, cada vez mais, mas em comum ambos são muito originais e mais ‘brasileiros’ hoje. O beat está distante do que era e é feito na música dos EUA e europeia, ao contrário do que acontecia nos anos 80-90, que era uma importação dos beats e às vezes melodias também e MCs brasileiros criando em cima daquilo”, diz.
Bad$ista (nome artístico de Rafaela Andrade) pensa semelhante: “Além dos timbres e das letras, o funk se tornou muito mais original do que era quando começou. Digo isso me apoiando na produção musical, como levada, ritmo, timbres. Antes, ele era muito um Miami Bass com letras em português”, opina.
Após alguns singles de sucesso (Na Madruga chegou a ganhar remix de Branko, do Buraka Som Sistema), Bad$ista lançou seu primeiro e hômonimo EP, em abril. Apesar de defender as misturas, ela enxerga que a popularização do funk possui também disputas de poder. “O funk alcançou o mainstream porque finalmente entenderam o quão rentável é se você respeitar, e aproveitar, a lei de oferta e demanda. O que acontece muito é: gostam muito do funk, da batida, do grave, mas não gostam dos funkeiros (as), entende? Tudo bem você fazer uma festa em áreas nobres cultuando o funk, mas se os funkeiros colarem, vão ficar olhando estranho; ou, tudo bem você cantar Baile de Favela, brincar de ‘ser favela’ por uma noite, desde que a real favela não esteja ali, saca?”, critica. E segue: “Isso que me deixa brava. Quando você quer levantar uma bandeira e protagonizar algo de dentro do seu quarto individual, num apartamento no 10º andar de um condomínio que custa R$ 300 por mês. Assim é fácil, muito fácil.”
Bad$ista diz que mainstream gosta do funk, mas não do funkeiro. Foto: Lucas Sá/ Divulgação.
A crítica de Bad$ista, em entrevista concedida em meados de junho, soa profética no momento em que o Rap da Felicidade é entoado nas aberturas das Olimpíadas do Rio de Janeiro, mas sem a presença de seus autores, os MCs Cidinho e Doca. Pelo Facebook, a funkeira Deize Tigrona protestou: "Ué, gente porque o próprio Cidinho e Doca não vão se apresentar nas olimpíadas e sim outros artistas que vão cantar o Rap da Felicidade? Preconceito com os funkeiros? Preconceito com o funk... Estou indignada! O funk hoje em dia movimenta o mundo. Não adianta tentar nos camuflar, nossas vozes sempre irão ecoar!".
APROPRIAÇÃO CULTURAL?
Conforme o funk é recriado e popularizado, ele também recebe diversas críticas. A principal diz respeito à uma “apropriação cultural”. “Eu realmente reflito muito sobre isso”, conta Leo Justi. “No meu processo produtivo faço questão de incluir — numa proporção ainda modesta, como é o meu tamanho —, gente que vive o funk, que faz parte da nascente do funk, e tento inclui-los do modo mais educativo possível, pra que eles possam ganhar autonomia”, diz ele que, além de MC Carol, lançou, em parceria com o selo Funk na Caixa, Madame, novo single de Deize Tigrona (produção de Chernobyl), musa do "funk feminista" que hoje trabalha como gari e retoma a carreira após anos de depressão.
Ele explica: “Eu vejo da seguinte forma: existe uma coisa que é fazer arte com o coração, experimentar, seguir uma visão individual e apresentar ao mundo, e dessa forma se contribui pra cultura. Outra coisa é explorar a cultura pra enriquecer, ganhar fama, e basicamente só sugar. E isso pode ser feito por qualquer um que tenha capital e malícia, seja branco ou negro inclusive. Acusar um produtor independente de apropriação cultural por só por ele ser branco é um equivoco lamentável. Penso que aqueles que amam a cultura negra, como eu amo, e querem trabalhar com ela, devem colaborar pra que cresça com raízes firmes”.
Após o
caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro, o funk também foi acusado de promover a cultura do estupro. Bad$ista rebate: “A cultura do estupro existe com ou sem o funk, e é promovida de várias formas. Inclusive aquela em que é Ok transmitir uma cena de estupro na TV aberta em horário nobre, mas é um escândalo se houver um beijo – beijo não né, selinho – lésbico. Falar sobre sexo abertamente (ou implicitamente como em tantos gêneros musicais) não deveria ser um problema se a cultura do estupro e a falta de respeito não fossem ensinadas a maioria dos homens desde pequenos”. E sobre a falta de visibilidade das mulheres no funk e EDM, ela emenda: “A única coisa que tenho a dizer é que estamos crescendo e quando menos perceberem estaremos em todos os lugares que envolvem a cena eletrônica, porque, a cada dia que passa, ficamos mais fortes”.