Grace Jones narra sua transformação artística em livro de memórias

Cantora conta como foi de uma criança reprimida na Jamaica até estrela da disco music e da moda
GG ALBUQUERQUE
Publicado em 29/05/2017 às 10:15
Cantora conta como foi de uma criança reprimida na Jamaica até estrela da disco music e da moda Foto: Foto: Divulgação


“Cantar é uma forma de manipulação das emoções. É algo que você faz com sua voz – você manipula uma situação para conseguir o que deseja. Eu entendi isso. Isso me ajudou a cantar como Grace Jones, que era o que eu queria o tempo todo”, conta Beverly Grace Jones em I'll Never Write My Memoirs (Gallery Books, 400 páginas), onde narra o processo de transformação da jovem garota jamaicana em avatar do hedonismo luxuoso da era disco music.

Escrito em parceria com o ghostwriter Paul Morley (autor de obras sobre U2, Joy Division, David Bowie), o livro não é uma biografia detalhada. Quase não há datas dos acontecimentos relatados e quando existem elas são difusas (“O tempo para mim é uma energia”, justifica). É mais uma autoanálise levando a própria vida como um processo de formação da sua persona artística.

Grace Jones nasceu no pequeno condado de Spanish Town. Seus pais deixaram a Jamaica quando ela ainda era pequena para tentar a vida nos Estados Unidos. Como de costume no país, a pequena Bev, como era chamada, passou a viver com os irmãos na casa de sua avó, casada com um pastor pentecostal conservador. Quando tinha nove anos, a menina foi encontrada junto de um garoto, ambos descobertos, dentro de um barril. A comunidade levou duas semanas para decidir como a puniria. “Uma natural curiosidade sobre como eu me sentia de verdade — e não como me mandavam sentir — levou a um julgamento que implicava que havia quebrado a lei e enfurecido seu Deus malicioso”, relembra. “Os golpes vieram secos. A punição era a maneira de eles nos manterem na linha.”

A criação rígida e infligida de culpa teve forte impacto ao longo de toda vida, inclusive na intensa relação de sua música com a sexulidade. “Era tudo sobre a Bíblia e espancamentos. Nós fomos espancados por qualquer pequeno ato de desobediência, e apanhamos cada vez mais forte quanto pior a desobediência. Isso me formou como uma pessoa, minhas escolhas, homens por quem eu fui atraída – tudo o que pode ser rastreado de volta para como eu fui criada”.

A vida mudou quando, aos 18, ela foi para os Estados Unidos e decidiu experimentar tudo que podia. Deixou crescer o cabelo black, aderiu ao nudismo, desbundou no amor livre e no LSD – orientada, inclusive, pelo guru psicodélico Timothy Leary. Ainda com essa vontade de conhecer o mundo, foi coelhinha da playboy, fez pequenas atuações no teatro e entrou na carreira de modelo – que a levou a Paris, à vida noturna, a conhecer o papa da pop art Andy Warhol e o teatro japonês do kabuki por intermédio do estilista Issey Miyake, com quem trabalhou no desfile/show Issey Miyake and Twelve Black Girls.

Apesar de sua formação e iniciação musical ter acontecido nas boates disco como o Studio 54 (“Onde uma drag queen anônima poderia dançar ao lado de uma superestrela internacional”, observa), Grace mantinha uma visão de longo alcance, sempre à procura do novo, do desafio transgressor. Era comum passar no Max’s Kansas City, icônico bar frequentado por pioneiros do punk e glam rock como Lou Reed, Marc Bolan, Iggy Pop e New York Dolls.

“Havia o Studio 54 e havia Max e os clubes subterrâneos. Duas abordagens ao glamour, uma para as pessoas da moda, uma para as pessoas mais intelectuais”, analisa. “Um era mais político do que a outro, mas eu estava confortável em ambos os lugares, porque eles eram sobre a diferença, preenchido com pessoas diferentes, e eu gostava de diferença. Eles representaram diferentes maneiras de desenvolver o espírito dos anos 1960 como uma década de mudança transformada em outra, uma em puro escapismo, a outra mais experimental e quase acadêmica em sua busca de perfeição musical.”

REDESCOBRINDO A JAMAICA NA VANGUARDA DO POP

Os três primeiros álbuns de Grace Jones, entre 1977 e 1979, eram reproduções mecânicas da disco music, sem muitos atrativos e feitos com pouco envolvimento seu. O produtor Tom Moulton era autoritário. Não apenas castrava seu canto como tomava conta de todo o processo criativo. A reviravolta veio ao conhecer Chris Blackwell, o dono e fundador da Island Records.
Também jamaicano, Blackwell tornou-se amigo de Grace e a incentivou a seguir o caminho esboçado com a versão de La Vie en Rose, um dub que parecia "seguir para sempre". A ideia era imergir no som e redescobrir a Jamaica. O resultado foi Warm Leatherette (1980), disco que redefiniu seu som e a consolidou como uma das artistas mais provocadoras da época.

Acompanhada pelo guitarrista Barry Reynolds (que tocara em Broken English de Marianne Faithfull) e pelos produtores Sly & Robbie, Grace uniu a vibração da disco, a guitarra incendiária do rock e o groove do dub e reggae. Somou ainda um repertório de ouro com composições de Bryan Ferry, Smokey Robinson, Tom Petty, Chrissie Hynde (do Pretenders) e do duo pós-punk The Normal.

O amadurecimento de Grace Jones culminou em One Man Show (1982), um show e um “filme concerto” em que levou ao palco todas as sonoridades, todos os países e todas as referências artísticas que absorveu. Um espetáculo, concebido para destacar as suas qualidades performáticas, hoje estudadas por todas as divas pop. “Eu era tanto uma artista performática como uma cantora pop ou atriz. Ou pelo menos eu estava interessada em apresentar-me como cantora de uma forma que rompesse com o que rapidamente se tornou um conjunto muito estreito de tradições. A maior parte da performance pop não levava em conta a pop art, os filmes de Warhol, uma passarela europeia ou o teatro japonês. Parecia haver muitas maneiras diferentes de fazer um concerto onde você seria influenciado não por um show de rock’n’roll ou uma dança soul, mas pela arte minimalista, expressionismo e cinema de vanguarda”.

As elocubrações constantes de Grace podem decepcionar o leitor, mas o livro nos coloca dentro da mente de um nome que remodelou a música pop. Em suas palavras: “Eu estava simplesmente sendo eu, não pensando sobre a cor da minha pele ou meu sexo – eu estava fora de raça e gênero: eu me considerava uma energia que ainda não havia sido classificada (...) Estávamos vendo até onde era possível esticar o ser humano antes de se tornar algo completamente diferente”.

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