FIG 2017

Festival de Inverno de Garanhuns tem edição pra entrar na história

Dez dias de programação intensa e de qualidade encerram com Marina Lima e Fernanda Abreu

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 30/07/2017 às 15:16
Fer Verissimo /Secult PE
Dez dias de programação intensa e de qualidade encerram com Marina Lima e Fernanda Abreu - FOTO: Fer Verissimo /Secult PE
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GARANHUNS -  Ela já não é a estrela de massas que, da publicidade de jeans ou lonas de circos voadores aos programas carnavalizados de auditórios como o do insubstituível Chacrinha, ditava o ritmo respiratório do pop brasileiro – hoje mais ocupado por figuras de acordes menores. Madura, orgulhosos 61 anos, de uma beleza que gera jurisprudência e magnetismo, Marina Lima, contudo, segue com sua esfinge. Escalada para fechar os trabalhos do intimista Palco Pop na última noite do Festival de Inverno de Garanhuns, a cantora fez uma apresentação radiante longe do maior palco do evento. A de maior beleza da noite. E também de maior público do palco: do gargarejo ao fim, o plateia se espalhava até a metade da rua.

Depois de uma temporada crua em que percorreu o País apenas com seu violão no show No Osso, Marina está de novo em abrigo eletrônico. Depois do famoso trauma nas cordas vocais em que metade de sua extensão sumiu,  ainda tem a voz muito delicada. Mas canta com tanta verdade sussurrada que, mesmo quando, vez ou outra, a voz diminui, a canção permanece integramente bela. Ainda que gripadíssima, controlando uma febre com antibióticos na noite do sábado, sua voz estava com um vigor grave como há varias turnês não se via.

Sob a companhia da banda Strobo, formada tão somente pelos paraenses Léo Chermont  (guitarra e efeitos) e Artur Kuntz (bateria e programação), clássicos de Marina ganharam uma dilatação cool, mais atmosférica. Quando de seus números sem o canto de  Marina, a Strobo imprimia um leve tempero amazônico de guitarradas à sua eletrônica elegante. Com fome de palco e  determinação leonina, Marina incorporou também a sexual Vingativa, uma parceria com a banda em que, usando evocações muito diretas ao falo, narra uma mulher em desprezo à arrogância masculina. Linda e aderente também sua parceria com Adriana Calcanhotto, “Eu não quero mais amor”. Fazendo coro à plateia, fez um trocadilho político com a letra de Pra começar: “....Se o Cunha caiu, que o Temer caia”. Uma noite inesquecível: para a cidade e para a cantora.

Antes da Marina, o palco foi da pernambucana Flaira Ferro e da paranaense Simone Mazzer. Com a naturalidade de uma estrela que não se embriaga com a própria luz, Flaira é mesmo uma grande revelação. É dela mesma a melhor definição sobre sua migração da dança, exímia bailarina que é, para o canto: “Pra mim, as duas coisas são uma só. Cantar é dançar com a voz”. Suave e afirmativa, Flaira dançou muito com a voz. Até de ponta cabeça cantou.  A banda que teve o luxo de Juliano Holanda na guitarra e a marcação da bateria de Rafa B. imprimiu uma sonoridade rocker ao show.

Depois dela, o céu parecia se abrir em tempestade e o chão tremer a cada vez que a também atriz Simone Mazzer soltava a voz. As versões tão epicamente dimensionadas de Camisa Listrada, de Assis Valente, e Vaca Profana, de Caetano, faziam parecer todas as gravações anteriores apenas anteriores. De uma gravidade absurda sua versão para Auto das Bacantes, de Negro Léo e Ava Rocha. Com a naturalidade de quem puxa um guardanapo do bolso, Simone vai muito rapidamente do samba-canção ao hardcore. Sempre narrativamente performática (como na sua teatral versão da naturalmente teatral Não Recomendados, de Caio Prado), ela, contudo, não abre a boca sem evocar uma dramaticidade que, sim, faz a terra parecer estar tremendo sob nossos pés enquanto as artérias do corpo são todas acionadas pelos ouvidos.

SAMBA SOUL

Na Praça Mestre Dominguinhos, a multidão de quase 100 mil pessoas bailou sob sotaque carioca. Também curador do Palco Sunset do Rock in Rio, o cantor Zé Ricardo fez um show de levada soul e funk, com seu vocal cheio de maneirismos pops dos anos 80. Convidada para interagir com ele, Sandra de Sá declinou de última hora do convite do amigo – seus empresários, acreditando que estava sendo divulgado que a cantora faria um show solo, e não uma participação,  criaram empecilhos de última hora e a participação foi cancelada. Perdeu Sandra, ganhou a pernambucana Edilza Soares que encheu com seu vozeirão soul a praça no dueto de Sarará Crioulo. Pra fechar a noite, a eterna garota swing sangue bom Fernanda Abreu fez um show deliciosamente previsível. Aliás, mais que deliciosamente: se as novas canções não possuem a vibração das antecessoras, sua musicalidade cristalizada nos já distantes anos 90 prova que a garota da lata ainda tem fôlego para animar muito baile. Fernandinha queria fazer show e fez baile com uma banda potente a duas backing-vocal e bailarianas mostrando que a vida re renova na pista. Abrindo os trabalhos da noite, o incontrolável “curió de Setúbal”, soul man e outras cositas mais, o pernambucano Jr. Black.

BALANÇO 

Com um público de cerca de um milhão de pessoas nos dez dias de programação, e orçamento de R$ 6,5 milhões aportados pelo Governo do Estado de Pernambuco, esta 27ª edição do Festival de Inverno de Garanhuns teve mais de 500 atrações, sendo 200 delas apenas de shows distribuídos, além do grande Palco da Praça Mestre Dominguinhos, em pólos divididos de acordo com as especificidades sonoras de cada palco: pop, forró, instrumental. Este ano, indicando como parcerias só podem enriquecer o festival que é referência nacional, o trabalho em conjunto com o Conservatório Pernambucano de Música transformou a Igreja de Santo Antônio, no centro de Garanhuns, numa catedral da grande música de câmara. Em apresentações como a da soprano Cida Moreira ao piano ou do projeto em que músicos como Toninho Horta e Mauro Senise revisitaram a obra de Luiz Eça, a matriz ficou absolutamente cheia de gente entusiasmada. Na metade final do festival, a igreja foi ocupada pelo projeto Virtuosi: por pouco, as paredes do prédio religioso não derreteram de tanta emoção durante o recital de árias com Edson Cordeiro com a orquestra jovem Virtuosi.  Noutra vertente, o Parque Euclides Dourado recebeu uma Batalha de Hip Hops contemplando mais essa linguagem.

Ainda que receba algumas críticas da “turma dos camarotes” (comercializados, por cerca de R$ 10 mil, cada um, por uma empresa privada sob orientação da prefeitura), mais interessada nas atrações de maior popularidade midiática, esta edição não apenas mostra a maturidade do festival como uma coragem curatorial impressionante. Se o palco principal, claro, teve também as grandes estrelas para o deleite da multidão – e, óbvio, estamos também em festa – sobretudo os palcos menores, como o pop e o ousado Som na Rural, trouxe o que há de mais insurgente e revelador no cenário pop local e nacional – banda Marsa, Ava Rocha, Não Recomendados, para citar alguns exemplos. Elogiável também a iniciativa de transformar a festa em negócio. “Claro que se trata de festa, mas, sobretudo, de uma ação de política pública cultural.  Então, temos que investir em formação de público, ampliação de linguagens e investir também em quem não tem tantas oportunidades no mercado, sem esquecer que a música pernambucana, como outras linguagens, é uma referência até mundial”, avaliou Márcia Souto, presidente da Fundarpe.

Na Galeria Galpão, o teatro mais alternativo do Recife motivou um público tão entusiasmado como o da música, com peças incorrendo sobretudo numas das temáticas mais recorrentes do contemporâneo: a perversidade do patriarcalismo e os novos padrões morais e sexuais.

Pela primeira vez, o FIG contou, sob a curadoria das produtoras Priscila Melo e Heloísa Aidar, com dois dias de uma plataforma em que artistas, distribuidores e produtores puderam trocar experiências e informações preciosas sobre os novos caminhos do mercado de música no Brasil. A plataforma contou com a participação, do Rec Beat ao Rock in Rio, com produtores dos principais festivais de música do País. “Bacana que, além de tudo, houve também já a sinalização de se contratar algumas atrações do FIG para outros festivais”, diz Heloísa. “Esse é um festival que sempre traz repercussões, em mídia ou outros festivais”, dizia, contente, Fábio Trummer, depois do show de sua banda Eddie.

Se apenas uma noite precisasse ser registrada, basta lembrar o que se viu no primeiro dia do Palco da Praça Mestre Dominguinhos: apresentado na noite da sexta (21) no palco principal do Festival de Inverno de Garanhuns, o Tributo a Belchior concebido pelo diretor artístico André Brasileiro e o agora maestro Juliano Holanda está escrito, sem pedido de favor, na gaveta de um Opinião ou um Grande Circo Místico: poucas vezes, tantos e tão gigantescos intérpretes uniram vozes pela obra de um único e não menos projeto artístico. Das mais antigas ou novíssimas gerações, nomes como Ângela Rô Rô, Tulipa Ruiz, Ednardo, Lira, Juvenil Silva e Isaar se apropriaram do cancioneiro do homenageado do festival. Belchior teve sua obra reverenciada e, sem prejuízo da impressão original, atualizada para acordes contemporâneos em que mostra sua atemporalidade. Um espetáculo que, se não vai circular pelo País, já que nasce e morre no FIG, deveria pelo menos virar disco. A história da música brasileira agradeceria. 

 

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