Com apenas um disco lançado, no Recife, o pianista pernambucano Amaro Freitas tornou-se um dos nomes mais comentados da música instrumental brasileira em 2017. Sangue Negro (independente), o título, foi incluído nas listas de melhores do ano de quase todos os principais jornalistas especializados. O que faz de Amaro Freitas um dos destaques do Gravatá Jazz Festival, onde se apresenta hoje, com o baixista Jean Elton, e o baterista Hugo Medeiros: “Vamos tocar alguma coisa de Sangue Negro, e músicas inéditas, feitas para o segundo disco”, adianta Freitas, que volta ao palco do GJF, segunda-feira, com o grupo carioca Flenks, formado por três veteranos, Cesinha (bateria), Fernando Nunes (baixo) e Fernando Caneca (guitarra). Guardadas as devidas proporções, Sangue Negro teve o mesmo efeito na crítica do Sudeste que causaram a Spokfrevo Orquestra uma década atrás, ou Chico Science e Nação Zumbi nos anos 90. Acostumada a receber matéria-prima, de repente, veio a surpresa da qualidade irrepreensível do produto manufaturado.
Na capa, Amaro Freitas numa pose à Thelonious Monk (com quem tem semelhanças físicas). No repertório, um dialogar frenético, extremamente elaborado de piano, trompete, bateria, contrabaixo. Além dos citados Jean Elton e Hugo Medeiros, o sax de Eliudo Souza e o trompete de Fábio Costa (que já recebeu elogios rasgados de Wynton Marsalis). Em o Globo, o crítico Mauro Ferreira escreveu: “Sangue Negro (independente) é a surpreendente estreia do pianista e compositor Amaro Freitas, pernambucano de 25 anos que parece ter décadas nas costas, mesmo que soando com extraordinário frescor. Invenção, técnica e tesão conjugados em seis longos temas que ampliam as noções de um jazz com sotaque brasileiro”.
Uma história que lembra, nos ingredientes da música, um pouco a do maestro Moacir Santos e do próprio Naná Vasconcelos, que incluiu no seu trabalho de apelo universal a vivência com ritmos e gêneros regionais. O jazz de amaro Freitas é permeado por um toque de frevo, a única música popular que exige, tanto do autor quanto de quem a executa, requintes técnicos que somente o jazz ou a música erudita requerem.
O experiente Mauro Ferreira resumiu bem o trabalho do pianista que levou muita gente ao restaurante Mingus, em Boa Viagem, onde tocava, e ainda toca, quando a agenda permite: “Posso dizer que estou num momento mágico, e com muita coisa para fazer este ano. Comecei levando o piano pela primeira vez ao Sertão, na festa de Louro do Pajeú, depois fiz dois Sesc em São Paulo. Toquei também no Auditório Ibirapuera, tenho shows marcados até junho. Acho que cada show que faço abre espaço para outras apresentações, para outros festivais”, comenta.
Quem escuta os sofisticados temas que Amaro Freitas executa ao piano – a velocidade nos dedos, a exatidão nas notas – demora a acreditar que o piano entrou em sua vida por acaso. Quando adolescente, a fim de tocar no grupo da igreja evangélica que a família frequentava, Freitas pretendia ser baterista:
“Mas todo garoto da igreja também queria a bateria. Então meu pai me sugeriu que eu tocasse teclado. Eu disse a ele que era muito difícil, precisava dominar as teclas com as duas mãos. Ele me conseguiu um tecladozinho simples, e acabei procurando aprender. Tomei-me de amores pelo teclado, e comecei a tocar. Então um dia ganhei um DVD de Chick Corea de presente. Tive aquele sobressalto. Até aí eu só conhecia a música da igreja. De repente, ouço aquilo, como é que se pode tocar uma música assim num teclado? me perguntei. Depois ganhei um disco de Oscar Peterson, um amigo do meu bairro me deu um disco de Gonzalo Rubalcaba, e assim fui conhecendo outros tipos de música”, conta Amaro Freitas, que somente depois conheceria o jazz transgressor de Thelonious Monk e John Coltrane. Inclua-se nestas descobertas um songbook de Lourenço da Fonseca Barbosa, Capiba, que foi um ótimo pianista. Na verdade, Amaro Freitas retoma a tradição do piano pernambucano, um instrumento que, até os anos 40, fazia parte do mobiliário da classe média do Estado. Ele reconhece que piano não seria a mais adequada escolha de um instrumento para um garoto pobre, de Nova Descoberta, Zona Norte da capital:
“Aqui no Recife a preferência é pelos instrumentos de percussão, bateria ou, por causa do frevo, principalmente, metais, sopros. Não me importei quando as pessoas diziam que eu jamais viveria de piano, de música instrumental, no Recife, tocando com músicos daqui. Teria que ir para Rio ou São Paulo, tocar com músicos paulistas. Eu achei que poderia. Por isso procurei os melhores profissionais, e continuo fazendo isso”.
Aos 15 anos (está com 26), Amaro foi aprovado numa seleção para o Conservatório Pernambucano de Música, mas não fez o curso até o final: “Rolou uma dificuldade financeira na família, mas eu queria continuar a estudar. Decidi trabalhar para pagar um curso. Fui trabalhar num call center. Com o que ganhava lá custeei o curso no Tritonis, com Thales Silveira, aprendi arranjo, harmonia, solfejo. Aí me interessei pela universidade, mas o que ensinam de música na universidade é o erudito do século 17, 18. Preferi fazer um curso de produção fonográfica na Aeso”.
Solidificando a formação teórica, Amaro Freitas passou a tocar profissionalmente, e aí valia tudo: “Existe um preconceito contra esta galera de música de massa. Mas esse pessoal trabalha muito. Eu toquei com sertanejos”. Amaro Freitas é um dos dois convidados do novo disco de Lenine, Em Trânsito o outro é o flautista Carlos Malta). Freitas está na faixa Lua Candeia, parceria do cantor e compositor pernambucano com Paulo César Pinheiro, lançada por Margareth Menezes em 2001.
O próprio pianista já começa a gravar o segundo disco, agora com mais facilidades do que Sangue Negro, cujos temas foram criados e apurados enquanto tocava no Mingus. A gravadora inglesa Far Out terá o privilégio de lançar o álbum no exterior, com um prazo de seis meses para uma edição nacional. “Estamos tramando o segundo CD, não vai ter muito a ver com o primeiro. Cada disco reflete o seu momento. Sangue Negro era o meu momento na época, este outro disco vai trazer músicas que têm o que vivi neste período.”