A memória do frevo, em particular, e da música pernambucana, em geral, é fortalecida pela série Frevo Memória Viva, da Cepe, que chega a três volumes, todos assinados pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral. O primeiro deles, Frevo na Tempestade, biografia do maestro Ademir “Formiga” Araújo, foi lançado em fevereiro de 2017. Amaral está escrevendo o quarto volume da série, J.Michiles – Recife Manhã de Sol, previsto para chegar ao público no segundo semestre.
Hoje, no Paço do Frevo, a partir das 15h, serão lançados os títulos Getúlio Cavalcanti – Último Regresso e Maestro Duda – Uma Visão Nordestina. José Ursicino da Silva, o Duda, nascido em Goiana, há 82 anos, é um dos mestres vivos do frevo, e um arranjador reconhecido como um dos mais importantes da música popular brasileira. Getúlio Cavalcanti, pernambucano de Camutanga (Zona da Mata Norte), de 76 anos, é também mestre, só que na difícil arte de compor frevos de bloco, subgênero ao qual só se dedicou a partir de 1975.
Ambas não são biografias no sentido convencional, Carlos Eduardo Amaral amarra a história de vida dos dois músicos à análise da obra, atrelada também a comentários sobre música, com citações de outros nomes. Às vezes exemplifica suas asserções com detalhes técnicos que quebram o ritmo da narrativa, pelo menos para o leitor leigo: “A forma ternária (A-B-A) das árias de ópera e das árias populares, e a forma rondó (A-B-A-CA) comum na música sinfônica; o padrão rítmico do galope (colcheia e duas semicolcheias por tempo(...)”,trecho pinçado do livro sobre o maestro Duda, conhecido pelo seu bom humor ranzinza.
São duas trajetórias bastante diferentes e convergentes. Sem Getúlio e Duda haveria Carnaval, mas, obviamente, não seria a mesma coisa esses dois talentos. O maestro Duda tem uma carreira que se assemelha à da grande maioria dos maestros do frevo, começando quando ele ainda usava calças curtas até tocar em banda de música, no caso dele, na Saboeira, de sua cidade natal (surgida em 1849, e cujo nome oficial é Sociedade Musical 12 de Outubro). Daí em diante vislumbra-se um caminho em que ele enveredou pelos mais diversos campos da música, aqui, e no Sudeste, e não apenas no frevo, gênero pelo qual é mais lembrado, e com razão.
Duda, além de compositor inspirado, está em arranjos de centenas de frevos-canção e de bloco. É reconhecidamente um dos mais talentosos arranjadores do país.
Carlos Eduardo Amaral pegou o gancho de escrever sobre Getúlio Cavalcanti para uma digressão em torno do frevo de bloco, um dos mais peculiares estilos musicais do país, que no Sudeste muita gente considera ser o mesmo que marcha rancho. Não é, claro. Tem diferenças sutis para quem não conhece o frevo. Curiosamente, pernambucanos também parecerem ter a mesma opinião dos “sulistas”, e estão incorporando marchas rancho ao repertório de frevos-de-bloco. Amaral entrevistou algumas personagens do universo dos chamados blocos líricos, para os quais Getúlio Cavalcanti compõe.
Um livro que fez com mais facilidade do que aquele sobre o maestro Duda “Foi mais fácil escrever sobre Getúlio porque ele estava mais disponível, e respondeu sobre tudo, inclusive sobre sua passagem pela política. Com Duda foi complicado porque ele nunca tinha agenda disponível, depois, as pessoas que ele me indicou para falar sobre o trabalho dele não atendiam, ou responderam e-mails com respostas curtas. Duda é uma unanimidade, no sentido de muito produtivo. Mas quase tudo que gravou no nome dele está fora de catálogo, e com outros artistas fez coisas demais. Já Getúlio além de um volume menor de trabalho, é muito organizado. Me economizou muito tempo de pesquisa. Tem tudo que saiu dele na imprensa, arquivo de fotos, e tem todos seus discos”.
O maestro Ursicino, confirma o livro, faz-se mais presente na música pernambucana do que se imagina. A rapidez com que escreve arranjos o torna requisitadíssimo. Foi a ele, por exemplo, que o músico e compositor Rogério Andrade recorreu para que arranjasse Ninguém Segura o Sport, grande sucesso do carnaval de 1980. Naquele ano, o outro frevo mais tocado foi Querias, Meu Amor, Querias, de Plácido de Souza, gravada por Ray Miranda.
BOM SEBASTIÃO
Impossível se falar de frevo sem citar a Fábrica de Discos Rozenblit, mais conhecida no Recife como a “Mocambo” (título de um dos seu selos). A “Mocambo” faz parte da carreira de Getulio Cavalcanti, que ali estreou em 1962, com o frevo canção Você Gostou de Mim, e só voltou ao disco em 1976, com O Bom Sebastião (homenagem ao compositor e cantor Sebastião Lopes). Segundo revela, José Rozenblit, o presidente da gravadora, só o aceitou porque, na época, Getúlio cantava na Rádio Clube, que divulgaria o frevo. “Quando deixei a rádio, ele não me deixou mais gravar. Disse que eu não compositor, era cantor.
Quando ele compôs O Bom Sebastião, Zé Rozenblit não se interessou. O maestro Duda escutou e foi conversar com Rozenblit para produzir um disco de novos autores. A música estourou no Carnaval de 1976, venceu festival de música carnavalesca, foi usada pelo bloco Banhistas do Pina. Até então Getúlio Cavalcanti não compunha frevos de bloco. Nem O Bom Sebastião foi tido, a princípio, como um frevo neste estilo.
Indicado pelo jornalista Leonardo Dantas Silva para o bloco Banhistas do Pina, a música não agradou ao compositor oficial da agremiação, Luiz Faustino. Leonardo conseguiu convencer Faustino, que aceitou a contragosto. Banhistas foi campeão do Carnaval de 1976, com Getúlio Cavalcanti desfilando no bloco tocando violão. Mais tarde Faustino e Getúlio seriam até parceiros.