Já houve um tempo em que o Brasil foi o país do futebol e do violão. Do futebol, pelo menos com a mesma habilidade de outrora, não é mais. Do violão continua sendo. Um lançamento do Selo Sesc ratifica a asserção. A caixa Movimento Violão reúne dez DVDs, ou seja, a temporada completa do projeto Movimento Violão (que existe há 15 anos), em 2012, com violonistas de estilos e gerações diferentes. Curador do projeto, o violonista Paulo Martelli assina a produção, que levou dois anos para ser finalizada e traz 92 faixas, em vídeos de linguagem cinematográfica, legendados em quatro idiomas (português, francês, inglês e espanhol).
Nomes consagrados como o Duo Assad e Marco Pereira, ou jovens então em início de carreira a exemplo de João Carlos Victor e João Kouyoumdjian, atestam a diversidade desta coleção de concertos, que contempla do jazz ao regional. Nem todos incluídos na caixa são brasileiros. Eduardo Isaac e Pablo Márquez são argentinos. O próprio Duo Assad, formado pelos irmãos paulistanos Sérgio e Odair Assad, desde 1985 mora nos EUA, e toca pouco no Brasil.
O leque de técnica, estilos e gêneros naturalmente é extenso. O paulista Paulo Porto Alegre, em concerto acontecido no Sesc Consolação, em março de 2012, toca um repertório com metade de temas assinados por ele, mais composições de Ralph Towner, Pat Metheny. Ele surpreende com estudos sobre temas de Beatles, em que emprega harmonizações sofisticadas em duas canções do quarteto, Yesterday e I Feel Fine. Um dos violonistas brasileiros mais premiados no exterior, Paulo Porto Alegre vai do chorinho (Pedrinho no Choro, de sua autoria), a Gershwin), com extremo requinte.
O que esses músicos parecem querer mostrar é que os compartimentos musicais não são estanques. O Duo Assad vai do violonista espanhol Fernando Sor (1778/1839) a Tom Jobim, passando por Aníbal Fernandes Sardinha, o Garoto, de quem tocam três composições. Passam por Piazzolla e chegam a Vila-Lobos. Paulista, de São José do Rio Preto, João Kouyoumdjian (de descendência armênia), assim como todos os violonistas incluídos nesta caixa, descobriu logo que, no Brasil, para o tipo de música que fazem, a melhor saída é o aeroporto.
Ele mora em Nova Iorque, onde gravou o primeiro e elogiado disco, Surfboard: Solo Guitar Works From Brazil (Pomegranate Music). No vídeo, toca com o baiano, de Salvador, João Carlos Victor (detentor de 18 prêmios importantes, entre eles o Francisco Tárrega International Guitar Competition, na Espanha). A dupla confirma a regra de que o que vale é a qualidade da música: tocam com virtuosismo e sem jogar para a plateia – do Prelúdio nº 5, de Heitor Villa-Lobo, a Feira a Feira de Mangaio, de Sivuca e Glorinha Gadelha; de Gente Humilde, de Garoto, a Ciaccona (BWW 1004), de Bach.
Marco Pereira é um dos mais conhecidos desta coleção. Ele toca com Paulo Martelli e a Orquestra Metropolitana, regida por Rodrigo Vitta. Com trânsito livre nos vários nichos, acompanhou e gravou com praticamente todos os grandes nomes da MPB. Sem deixar de fora a Rainha da Axé, Daniela Mercury, ou o Rei do iê iê iê, Roberto Carlos. O repertório é de composições de Pereira. Marcando a estreia de Lendas Amazônicas, fantasia em cinco movimentos para dois violões e orquestra, composta especialmente para este concerto. Um dos poucos não paulistas entre os concertistas,
o gaúcho Daniel Wolff, apresentou um programa encerrado com quatro scordaturas (grosso modo, afinação de uma ou mais cordas em notas diferentes). Todas de sua autoria. Vai de Tom Jobim, Egberto Gismonti, Ernesto Nazareth e Gaudêncio Thiago de Mello.Gaudêncio, falecido em 2013, foi músico e arranjador (curiosamente, ex-auxiliar técnico do Botafogo carioca). Morou nos EUA desde 1966, fugindo da ditadura (é irmão do poeta e ativista Thiago de Mello). Lá, desenvolveu uma carreira be m sucedida no jazz, como violonista e percussionista.
Pedro Martelli é o que mais se aproxima da música popular, mas não do trivial variado. Toca Guinga, Radamés Gnattali, Villa-Lobos, Garoto, e Geraldo Vespar (fez, em 2017, meio esquecido, 80 anos).Os virtuosos argentinos Pablo Márquez e Eduardo Isaac têm vitoriosas carreiras internacionais. Ambos mais próximo do erudito e de compositores de língua hispânica, sem faltar, obviamente, Astor Piazzolla. O Quarteto Abayomi, ou “encontro feliz”, em tupi-guarani, tem uma formação de qu atro violões, tocados por Adriano Paes, Marcelly Rosa, Juliana Oliveira e Josiane Gonçalves. O quarteto se aproxima mais das tradições da música brasileira: chorinhos, modinhas a cateretês e xote.