No início era a Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis, nome criado para participar de um festival de rock, em 1993. O grupo tirou o primeiro lugar, e meses depois estava de contrato assinado com a poderosa Sony Music. 25 anos depois a Jorge Cabeleira lança hoje, nas plataformas digitais, o terceiro álbum de estúdio, intitulado Jorge Cabeleira III. Um interregno de 18 anos desde o segundo álbum, Alugam-se Asas Para o Carnaval. “A parada não foi proposital. Na verdade, ela foi grande porque ficamos decepcionados em não termos conseguido muita visibilidade com o segundo disco. Era 2000, o mercado independente brasileiro estava apenas começando a dar os primeiros passos sem apoio de gravadoras e tal, fizemos o nosso, aprovamos projeto em lei de incentivo”, explica Dirceu, o vocalista e guitarrista. O grupo tem mais dois dos seus fundadores, Rodrigo Coelho e Pedro Mesel (percussão e vocal), e mais Everton Belisca (bateria) e Ricardo Leão (guitarra).
O que permaneceu dos conceitos inicias da Jorge Cabeleira, das raras bandas da cena mangue que assumiam a influência da música pernambucana dos anos 70, alguma ligação estética com os dois discos anteriores? Para Dirceu Melo, sim: “Tem, por que o principal núcleo criativo da banda, formado por mim e Coelho, se manteve e nossas referências clássicas continuam todas lá, né? Rock setentista psicodélico, o baião de Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Zé Ramalho, Lula Côrtes e tantos outros. Foi essa mistura que sempre deu a identidade musical da banda, mas óbvio que esse período entre o segundo e terceiro disco, uma vida toda entre eles, nos faz acrescentar muita coisa e influências novas das nossas vivências”. Acrescente-se aos insumos dos anos 90, a exploração de reggae e dub com uso de delays. Timbres de guitarra que têm a ver com bandas como Mars Volta, Tame Impala ou Queen of Stone Age, world music, isto no caso de Dirceu. Rodrigo Coelho, que há anos mora em São Paulo, passou por várias tendências, incluindo aí a eletrônica experimental.
Ao longo desses 25 anos, os integrantes assumiram outras atividades: “Eu e o Coelho continuamos na música, Mesel se aprofundou no ramo da informática. Enquanto que eu comecei a produzir festas e grandes eventos ao mesmo tempo que criei e produzi outras bandas como a Eta Carinae e a Deltas. Coelho se aprofundou na produção musical para outros artistas e no seu projeto de música experimental eletrônica Grassmass”, diz Dirceu. Os outros integrantes da formação original são Beto Legião, e Davi Santiago, que exercia advocacia, e morreu eletrocutado, em 2013, ao pisar numa fiação solta no chão, na Avenida Jequitinhonha, em Boa Viagem, enquanto passeava com o cachorro.
A ideia da volta ao estúdio surgiu durante os shows em que celebraram os vinte anos do grupo: “Nos ensaios, fizemos umas jams, vimos que ainda tínhamos nosso fogo criativo. Depois dos shows, me deu vontade de fazer algo novo. Lá por outubro de 2017, convoquei uma conversa entre eu, Coelho e Pedro Mesel, membros originais, para sondar se topariam fazer um disco novo de inéditas, vontade que eu já vinha nutrindo por achar que a banda deveria e merecia registrar uma versão anos 20 de quem somos agora”, conta Dirceu Melo, que está morando em Portugal.
Gravado no Estúdio Casona, em Candeias, entre 2017 e 2018, Jorge Cabeleira III tem ecos do disco de estreia da banda, e mais uma vez promove-se o encontro de Led Zeppelin com Luiz Gonzaga. Talvez menos Led Zeppelin, e mais Robert Plant, em sua fase mais recente com o grupo Sensational Space Shifters, que traz o folk celta para junto da música árabe e africana. Em Arábica as peripécias de Rodrigo Coelho em harmonias modais são trabalhadas com a eletrônica. “Nesta música toco uma baglama turca, comprada em Istambul alguns anos atrás. Me apaixonei pelo som vendo um músico tocando na rua”, conta Dirceu Melo.
No entanto, O Homem no Canto do Bar, a primeira canção que Dirceu compôs, quando ficou decidido que o grupo voltaria ao estúdio. Soa como se o Led Zeppelin tocasse no estilo do Red Hot Chili Peppers, as guitarras predominam, mas prestando-se atenção se vai escutar o som de uma escaleta. O grupo se reaproxima dos primórdios da carreira, na releitura de Talismã, de Alceu Valença e Geraldo Azevedo (do álbum que os dois dividiram em 1972). Gravada com participação de Tagore, com quem Dirceu Melo durante umas jams turbinou a música de climas psicodélicos, com toques de Neil Young e Tame Impala.
Um disco inquieto, de surpresas, que não se guia por uma linha reta. Caminho Imaginário abre com guitarras caprichadas na pedaleira, heavy metal do comecinho dos anos 70. A faixa tem 4 minutos e 26 segundos. Perto do segundo minuto, o ritmo muda para um heavy baião, com a guitarra fazendo um intermezzo de viola. Não ter compromisso com gravadora permite ao artista uma liberdade ilimitada. Na faixa Sete Quedas, Rodrigo Coelho traz as experimentações de sua carreira solo para a Jorge Cabeleira. A música é um instrumental, em compasso 7/8, com um riff repetido ao longo de quase quatro minutos e muito noise.
Mamaterial surgiu de um riff criado no estúdio. A música foi montada aos poucos por Coelho, em São Paulo, um stoner rock, com uma linha melódica simples, embalada por uma chuva de efeitos. Brilho é a música mais antiga, composta quando não pensava em disco. Segundo Dirceu, inspirada em cânticos do Santo Daime, mais uma em que afloram as influências do Led Zeppelin,a levada é meio baião, que cai no dub na metade da música. 18 anos depois a Jorge Cabeleira reaparece em boa forma, e com o pique dos idos de 1993. (J.T.)