Para a forrozeira poeta e declamadora Karoline Maciel, e também para o músico Daniel Alves, aquela noite, duas semanas atrás, seria uma como várias outras. Saíram descontraidamente da casa onde a moça mora, em Jardim São Paulo, para uma apresentação no Empório Nova Raízes, no Pina. Um show com o coletivo Balancê Poético, grupo que mistura forró com poesia nordestina. Súbito, um rapaz fez sinal de que o pneu do carro estava murcho. Inocentemente, Daniel desceu do carro.
Sob a mira de um revólver, ambos receberam ordem de ir para o banco de trás e abaixar as cabeças: “Demos tudo o que a gente tinha pra ele, que ameaçou atirar se encontrasse alguma coisa de valor escondida. Disse o que havia na mala do carro, onde estavam os instrumentos. Procurando manter a calma, seguimos com ele sem saber para onde o cara ia. Mas acabou bem, ele deixou a gente na Muribeca, perto da BR-101”, conta Karoline.
Entre os instrumentos estavam rabeca, violão e um acordeom Scandalli italiano. A forrozeira ficou sem sanfona às vésperas do início da temporada junina. Sem condições de comprar outro acordeom agora, ela vai abrir uma conta bancária e fazer uma campanha, online, para levantar a quantia suficiente para adquirir o instrumento, que não é barato. Uma sanfona média, profissional, de boa marca, não sai por menos de 15 mil reais.
Karoline não é uma sanfoneira que aprendeu a tocar “de ouvido”, para ganhar a vida, ou por mero diletantismo. Ela foi a primeira aluna a concluir todas as etapas do curso de acordeom do Conservatório Pernambucano de Música (CPM), com o professor Júlio César. Antes disso, estudou cinco anos com o Mestre Camarão, um dos grandes nomes da história da sanfona no Brasil. Com 18 anos, Karoline Maciel se apresenta em público há 15. A estreia foi com três anos, numa granja em Aldeia:
“Com uns cinco anos eu declamei num festival de cantoria de viola no Pátio de São Pedro. Meu pai gosta muito de repentistas. Eu mesma, antes de ler, decorava versos. Com uns sete anos eu queria aprender sanfona. Daí, meu pai me colocou pra estudar música e aprender a ler partitura. A professora pedia para a gente desenhar o instrumento que pretendia tocar, eu sempre desenhava uma sanfona”.
O pai comprou-lhe uma sanfona pequena, para criança. Porém, a filha queria ir mais longe. Estudar com o Mestre Camarão (Reginaldo Alves Ferreira, 1940/2015) era seu sonho. O pai da menina, Floriano Maurício, comprou uma sanfona de 48 baixos, antiga, mas em ótimo estado. Karoline lembra que o mestre era meio impaciente, não perdia tempo com aluno em que não via inclinação para o instrumento:
“Mas acho que viu que eu levava jeito, porque três meses depois de ter virado sua aluna, Camarão me convidou para tocar com ele em Caruaru. Estudei com o mestre durante cinco anos. Depois, fiz o teste para o Conservatório, e conclui curso técnico em acordeom”, diz Karoline, que começa a cursar licenciatura em música na UFPE no próximo semestre. Fechou o curso de arquitetura que fazia na mesma universidade, deixando insatisfeita a mãe, que preferia que as filhas seguissem uma profissão mais convencional.
Karoline Maciel estreou tocando sanfona num grande evento com oito anos, numa celebração a Gonzagão no Pátio de São Pedro. Ela e a irmã, hoje com 16 anos, Julianne Maciel, que estuda flauta no CPM. As duas lançaram, em 2010, o CD Crescendo com a Poesia. Karoline então com nove anos, e Julianne com sete. O pai incentivava a carreira das filhas, mas o curioso é que elas não tenham se bandeado para a música popularesca que predomina no País hoje, graças à classe média, maior consumidora de sertanejos. Karoline afirma que o seu paladar musical foi formado pelo que escutava em casa: “A poesia veio das cantorias, dos cordéis, e o forró dos discos que meu pai ouvia, Luiz Gonzaga, Camarão, Jackson do Pandeiro”.
Quando gravou o primeiro CD musical solo, em 2013, Karoline Maciel já era bem conhecida no circuito do forró pé de serra, por reunir no seu disco nomes como Dominguinhos, Ivan Ferraz, Dudu do Acordeom, Mestre Camarão, Ronaldo Aboiador e Anastácia. Desta última se tornou parceira: “Ela musicou a primeira poesia que escrevi, Coração de Menino. Ela gostou dos versos e fez a melodia”, conta a sanfoneira.
Mas o que a fez se definir de vez pela profissão foram os festivais. Os grandes certames musicais não são coisa do passado. Eles nunca deixaram de existir, vários são bastante concorridos e pagam bem aos vencedores. Depois de participar e se sair bem em festivais na região, foi finalista, aos 11 anos de idade, do Festival de Música de Jaboatão dos Guararapes.
Com 15 anos ficou em quinto lugar no mais importante evento do gênero no país, o Festival Nacional de Forró de Itaúnas, no Espírito Santo, concorrendo com Sou Matuto (parceria com seu Floriano, pai dela). No ano anterior, no mesmo festival, levou o prêmio de Revelação. No meio de tantos sertanejos, DJs e bandas de fuleiragem, Karoline Maciel está com uma agenda modesta para o período junino, quatro shows (um deles com Ylana Queiroga).
Resta-lhe cantarolar o baião Sanfona do Povo (Luiz Gonzaga/José Clementino), que viveu situação semelhante, quando lhe furtaram uma sanfona em 1964: “Quem roubou minha sanfona foi Mané, foi Rufino, foi Romão?/ Quem roubou minha sanfona foi o Zé, foi Batista ou Bastião?/ Quem roubou minha sanfona aí! Traz de volta seu ladrão”