João Gilberto foi muito além da voz suave

Um sucesso cercado por elogios, críticas e polêmicas
JOSÉ TELES
Publicado em 14/07/2019 às 8:50
Um sucesso cercado por elogios, críticas e polêmicas Foto: Foto: Reprodução Radiolândia


Seis décadas depois de ter inventado o que se convencionou chamar de bossa nova, João Gilberto continuava um enigma. Confundindo forma com conteúdo, grande parte das pessoas sabiam dele apenas a voz, quase um sussurro, e para entende-lo recorriam a comparações com intérpretes de vozes comedidas, o brasileiro Mário Reis, ou o americano Chet Baker.

 Suas idiossincrasias tidas como maluquices, feito o célebre episódio em que João teria feito Elba Ramalho passar por baixo da porta todas as cartas de um jogo de baralho, o que nunca aconteceu. Pelo menos desta forma, e com cartas de baralho. E ainda o célebre suicídio do gato italiano. O bichano teria cometido o tresloucado gesto depois de passar um dia inteiro escutando João Gilberto cantando a mesma música.

 Provavelmente o suicídio surgiu de uma brincadeira em cima de uma notinha publicada pela revista Radiolândia, quando João Gilberto, já sucesso na Europa, participou de uma turnê europeia, com alguns bossa-novistas, em 1963: “João Gilberto mudou-se, intempestivamente, do seu hotel na Itália. As más línguas dizem que ele levou um gato (bicho que ele estima muito). Sucede que o gato era de uma hóspede, que o está procurando até agora”. Não se sabe se levou o gato para a França, onde foi se tratar de uma tendinite na mão direita.

 Foi em Paris, separando-se de Astrud Gilberto, que conheceu Miúcha, com quem se casaria em 1965. A fama de esquisito surgiu e foi propagada quando lançou o LP Chega de Saudade, há 60 anos, e foi gradativamente tomando corpo:

 “João Gilberto chegou numa loja elegante da Quinta Avenida para comprar um sobretudo, estava sentindo frio. Era onze horas da manhã. Às cinco da tarde já haviam descido tudo o que havia na loja, e nada satisfizera a João, que acabou não comprando nada”, da mesma revista em novembro de 1962, mês do célebre concerto de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova Iorque.

 Na mesma coluna, chamada Passe Adiante, há quatro notinhas sobre o comportamento de João Gilberto. Mais uma: “João Gilberto foi convidado a assinar um contrato para permanecer na América, gravando discos e aparecendo no rádio e na televisão. Ele recusou alegando que não gosta de lugar frio porque, explicou, ‘lá as folhas caem das árvores e eu não gosto de árvores sem folhas’. Voltou tão depressa que esqueceu a esposa Astrud em Nova Iorque. Quem auxiliou-a a voltar foi Vinicius de Moraes”.

FALTA

A imprensa mundana não sabia como tratar o cantor da voz pequena. Estavam acostumados a Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, João Dias, todos donos de vozeirões tonitruantes, uma tradição que remontava ao tenor Vicente Celestino, que teria estourado microfones com a potência dos seu agudos. Não entendiam como um cantor com um fiozinho de voz, poderia ter ido tão longe.

Poucos se lembravam do João Gilberto do início dos anos 50, na cola do ídolo Orlando Silva, quando gravou dois 78 rotações, com selo da Copacabana e da Todamérica que poucos escutaram. Na Todamérica gravou em 1953, São Cristóvão, samba de Bororó, de quem Orlando Silva gravou Curare. Naquele mesmo ano, arvorou-se a descobridor de talentos, promovendo a novata Marisa, a quem forneceu uma de suas raras composições, Você Esteve? (parceria com Russo do Pandeiro). Marisa, com o apelido “Gata Mansa” faria sucesso como bossa-novista no início dos anos 60.

 Mas mesmo não apreciando o estilo, era impossível não se render aos fatos: “João Gilberto é o nome de um novo cantor baiano, de 27 anos, que está fazendo furor em São Paulo, onde já é Disco de Ouro. Gravou recentemente um LP com músicas de Antonio Jobim, Vinicius de Moraes, Ari Barroso e Ronaldo Bôscoli”, notinha da revista Manchete, no início de 1959. Na mesma revista, o jornalista Arnaldo Niskier diria sobre João Gilberto: “Se surgisse há uns dez anos, não resistiria a qualquer programa de calouros, sendo gongado, na certa”.

 Para Oswaldo Sargentelli, produtor e apresentador de espetáculos de samba, João Gilberto era um fenômeno passageiro “morrerá com o aparecimento do primeiro samba de Ari Barroso”. Mas nos EUA e Europa a bossa nova era a nova febre musical. O presidente John Kennedy se deixou fotografar e ser filmado em seu gabinete na Casa Branca, curtindo bossa nova, enquanto os filhos, Caroline e John-John tentam dançá-la.

O flautista Herbie Mann, o guitarrista Charlie Byrds, e os cantores Mel Thomé, Lena Horne e Sammy Davis Jr., alguns dos nomes do jazz que aderiram à bossa nova. Mas a estrela da bossa continuava sendo João Gilberto. Ora ele está com Charles Aznavour na TV Italiana, ora recebe 12 mil dólares por uma temporada de 14 dias nos Estados Unidos. Na imprensa, ignorava-se o óbvio, se não fosse a batida do violão, e a forma de cantar de João Gilberto, não haveria bossa nova.

 Mas se continuava a atribuir a este ou aquela a criação da nova forma de se fazer samba. Um dos que insinuavam que já cantava baixinho e empregava harmonias diferentes já em meados dos anos 50 era Tito Madi. Surgiu aí uma rivalidade que acabou em briga. João ensaiava com Elizeth Cardoso, no Teatro Record. Tito Madi estava próximo, e surgiu uma discussão com o baiano. Madi acertou-lhe um soco no queixo. João quebrou o violão na cabeça de Madi, provocando um corte no couro cabeludo do desafeto, que foi levado às pressas para um hospital.

 Data do início dos anos 60 o afastamento de João Gilberto dos amigos da bossa nova. Um dos poucos com quem se relacionou ao longo da vida foi com o recifense Normando Santos, que fazia parte do grupo inicial da BN. Morando em Paris desde meados dos anos 60, Normando quando vinha ao Rio visitava João, a quem hospedou muitas vezes em seu apartamento no Rio: “Lembro muito bem do João ensaiando O Pato de frente para o ângulo da sala, para obter melhor retorno do som. Ele cantava: O pato ... Só isso, e repetia O Pato e repetia O Pato... Depois me dizia: ‘Ta vendo Normando? Não é O Pato, é: O Pato’. E eu respondia que só ele sabia da diferença entre O Pato, e, O Pato. Mas o importante não era que eu soubesse a diferença, pra mim o importante era que ele sabia”.

 TUDO ERRADO

 Em plena era Beatles, João Gilberto e a então mulher Astrud Gilberto, com o saxofonista Stan Getz, bateram recorde de vendagem no mercado americano, com o álbum Getz/Gilberto, com 1 milhão de cópias. O disco deu-lhes um Grammy de Melhor Disco do Ano. João virou superstar, distanciou-se dos companheiros de bossa nova. De agenda cheia, ele só voltaria ao Brasil em 1966. Por esta época, a bossa nova politizara-se, e os combos de samba jazz popularizaram-se. João Gilberto, agora casado com Miúcha, passou quatro meses no país, não fez shows, nem visitou os colegas da bossa. Perto de voltar para os Estados Unidos, onde fixou residência, resolveu se deixar entrevistar, recebendo o jornalista Fernando Aflalo, do Jornal do Brasil.

 Perguntado sobre a música que se fazia então no Brasil, João disse que estava tudo errado: “Pretensiosa, e até superada, porque estão querendo fazer um tipo de jazz que já foi feito há 20 anos nos Estados Unidos e porque, além de tudo, o fazem mal”. A bossa nova mudara também a batida, e começava a ser chamada de MPB, com o primeiro festival vencido por Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. João Gilberto não gostou, e demonstrou isto com um comentário contundente: “Bobagem e demagogia”. Ninguém contestou publicamente as críticas de João, então já alçado ao status de mito.

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