Bob Dylan acrescenta um Prêmio Nobel de Literatura à sua coleção da qual constam, afora centenas de premiações de menor reverberação, 11 Prêmios Grammy, um Oscar e um Pulitzer. Ontem, em Estocolmo, a secretária vitalícia da Academia Sueca, Sara Danius, anunciou o vencedor de forma sucinta: "O Prêmio Nobel de Literatura de 2016 vai para Bob Dylan por ter criado novas formas poéticas de expressões dentro da grande tradição da canção americana". Ela comparou Dylan a poetas como Homero ou Safo, que também cantavam seus versos, e entraram na história da literatura como escritores.
Certamente vozes se levantarão contra a outorga de um prêmio de tal estatura a um roqueiro, por mais talentoso que seja. Pior, cuja bibliografia se resume a dois livros, Tarantula, uma impenetrável coleção de poemas, com uma linguagem mezzo surrealista mezzo beat, escrito entre 1965 e 1966, publicado em 1971, à sua revelia, pelo empresário Albert Grossman. O segundo só chegou às livrarias em 2004, Chronicles: Volume One, o primeiro de uma série prometida de cinco livros de memória, os outros até agora inéditos.
Além desses, apenas livros com compilações de letras de música e de reproduções de telas do próprio Dylan, que é também artista plástico. Sua obra reverenciada, incensada, quase unanimidade, está embutida num vasto corpo de canções distribuídas basicamente por 65 títulos, entre álbuns e caixas de série Bootleg, da Sony Music. Nesta contabilidade não entrou a caixa The 1966 Live Recordings com 36 CDs, que está chegando às lojas, com apresentações realizadas por Bob Dylan em 1966, um ano crucial para sua carreira, e por extensão para a música popular.
O novo prêmio Nobel de literatura nasceu em 1941, em Duluth, Minnesota, como Robert Allen Zimmerman. Somente 19 anos mais tarde Bob Dylan nasceria. O Dylan, do poeta irlandês Dylan Thomas (Bob sempre deixou na dúvida a origem do sobrenome adotado), um dos maiores do século 20, falecido em 1953. As influências literárias do Bob Dylan, menestrel que ganhava a vida, no início dos anos 60, cantando no efervescente circuito folk de cafés e pequenos clubes de Greenwich Village, passam por uma infinidade de vertentes, do blues às baladas tradicionais europeias, a Bíblia, até a geração beat (da qual ele foi ponta de rama, e idolatrado por Allen Ginsberg).
Durante algum tempo seguiu paralelo ao trabalho do poeta americano John Berryman (19141972). Adrienne Rich (19292012), feminista, ensaísta e uma das mais importantes poetisas dos EUA da segunda metade do século passado, foi das primeira intelectuais a ver Bob Dylan além do rock and roll. Em 1969, num ensaio para o jornal The Harvard Advocate, ela escreveu: "Uma nova linguagem está se desenvolvendo em alguns americanos que trabalham com a língua inglesa. Onde outros países têm a segurança de uma língua nativa, de um dicionário, os americanos precisam improvisar sua própria linguagem a partir de elementos básicos de outra".
Adrienne Rich cita dois escritores que estão contribuindo com este desenvolvimento: "Bob Dylan e John Berryman, ambos mudaram seus nomes, trabalharam muito para chegar ao sucesso em 1965, o ano em que Dylan passou a tocar plugado e Berryman ganhou o Prêmio Pulitzer por 77 Dream Songs. Ambos criaram furtando, aludindo ou pegando emprestado de várias fontes, e ambos escreveram canções".
No entanto, o próprio Dylan costuma se esquivar da classificação de "poeta maior": "Não sou poeta. Wordsworth é um poeta, Shelley é um poeta, Allen Ginsberg é um poeta". Desde o segundo disco, The Times They Are Achanging (1963), que Bob Dyan é envolvido na eterna discussão sobre poema e letra de música. Robert Christgau (hoje produtor, na época crítico de música), no jornal Rolling Stone, foi taxativo sobre o tema: "Bob Dylan é compositor, não poeta. My Back Pages, por exemplo, a letra é um poema ruim, no entanto a canção é muito boa".
Apesar de Christgau e outros intelectuais de opiniões assemelhadas, desde os anos 60 que os departamentos de literatura inglesa das universidades americana cortejam Dylan como poeta, a categoria em que ele se encaixava até os anos 70. Com esses departamentos tornando-se mais abrangentes em seu espectro, adentrado o universo da cultura popular, diminuindo a distância entre alta e baixa cultura, as letras do roqueiro passaram a ser tidas como literatura num sentido mais amplo.
Já há alguns anos que faculdades como a Ruskin College, Oxford, Utah Valley State College, Wofford, Harvard, Brown, Rhode Island School of Design e Community College of Southern Nevada oferecem cursos sobre a obra literária e musical de Bob Dylan. A Universidade de Cambridge publicou The Cambridge, Companion to Bob Dylan, contextualizado para universitários.
Muitos dos professores cresceram escutando os álbuns o cantor, como se ele anunciasse a cada lançamento um novo evangelho, apontasse caminhos, desvendasse mistérios. No entanto, Bob Dylan nunca foi, nem se arvorou a ser a voz de sua ou de qualquer geração. Quando se destacou no revival folk da década de 60, ele não escrevia a canção de protesto de dedo apontado para o que supostamente estava errado, tampouco poderia ser classificado de esquerda ou direita. Era um humanista que expressava o que sentia, não parecia ter interesse em mudar o mundo com sua música. Escrevia compulsivamente (anos depois confessou que não tinha a menor ideia como foi que compôs tanto em tão pouco tempo.
No entanto, é no mínimo excêntrico que o Prêmio Nobel tenha ido para um roqueiro que, aos 25 anos, em 1966, sugeriu que todo mundo ficasse chapado (em Rainy Day Woman #12 & 35) e que se inspirou numa viagem de LSD para compor Like a Rolling Stone, sua música mais elogiada. Um prêmio que monstros da literatura como James Joyce, James Baldwin ou Marcel Proust não ganharam.