Quando o presidente Jair Bolsonaro enviou à Câmara dos Deputados, no início de novembro, o projeto de lei estabelecendo as regras para a privatização da Eletrobras, dona da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, disse que era difícil prever exatamente quando haveria a capitalização da empresa porque “a dinâmica do Congresso pertence ao Congresso”. Mais de um mês depois da declaração, a palavra “inerte” poderia descrever melhor o andamento do texto na Casa. O Congresso chega ao período de recesso parlamentar, a partir de segunda (23), e o projeto não começou a tramitar. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sequer definiu quem será o relator. A expectativa do governo era que o relator fosse escolhido ainda este ano, mas a realidade dos fatos mostra que o projeto ficará para 2020.
Para que o texto seja destravado, bastaria que Maia determinasse a criação de uma comissão, mas ele está relutante porque o PL da Eletrobras sofre grande resistência de deputados e senadores, especialmente das bancadas de Minas Gerais e da região Nordeste (onde estão localizadas as sedes de duas das principais subsidiárias da estatal, Furnas e Chesf).
O atraso na tramitação do projeto poderia levar a discussão para além de 2020. Parlamentares ouvidos pela Agência Infra lembraram que o calendário legislativo no próximo ano será apertado. Com as eleições municipais, o Congresso só deverá abrir para votações no primeiro semestre, já que depois do recesso do meio do ano os deputados e senadores permanecerão em suas bases para eleger seus prefeitos aliados. Em um ano eleitoral, um tema sensível como a privatização de uma grande estatal corre o risco de ser esvaziado nas duas casas.
Segundo informações do jornal Valor Econômico, Maia estaria aguardando a articulação do governo para convencer os senadores da necessidade de privatização do Sistema Eletrobras, antes de dar andamento ao projeto. O deputado mais cotado para assumir a relatoria do texto é o deputado Fernando Filho (DEM-PE), ex-ministro de Minas e Energia do governo Michel Temer, que tentou emplacar a privatização durante a sua gestão. O pernambucano, no entanto, estaria propenso a não aceitar a missão porque enxerga dificuldades de o projeto avançar, pelas resistências no Senado, segundo o Valor. Procurado pelo Jornal do Commercio, o deputado não retornou às ligações.
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A estimativa do governo federal é arrecadar cerca de R$ 24 bilhões com a desestatização da Eletrobras. Desse total, R$ 16 bilhões seriam pagos ao tesouro pela outorga das hidrelétricas que pertencem à estatal. Esse valor, inclusive, já está previsto no Orçamento Geral da União (OGU) de 2020. O restante (estimado em R$ 8 bilhões) seriam usados para cobrir encargos tarifários e cerca de R$ 3,5 bilhões seriam empregados num programa de revitalização do Rio São Francisco. Isso resultaria num investimento de cerca de R$ 350 milhões, anualmente, por 10 anos.
Das medidas encaminhadas à Câmara pelo Executivo, a primeira é revogar um dispositivo que exclui a Eletrobras do Programa Nacional de Desestatização (PND). Essa lei é de 2004. “A Eletrobras vai se tornar uma corporação. E nenhum acionista terá mais que 10% de poder de voto”, afirmou o ministro Bento Albuquerque ao explicar o projeto. “A nossa ideia é de que a empresa volte a ter capacidade de investimento”. A União deve ficar com 40% das ações.
Em algumas ocasiões em que falou sobre o tema, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a Eletrobras “está condenada à morte” se não for privatizada.
Após o despacho de Maia determinando a criação da comissão, os partidos precisam indicar os 34 membros titulares e os 34 suplentes. Caso a oposição consiga obstruir o processo e não dar o quórum suficiente para a instalação, de 18 deputados titulares, o processo pode ser demorado. A eleição para a presidência da comissão ocorre somente após a instalação do colegiado. O presidente, por sua vez, indica o relator.
Em audiência realizada no dia 19 de novembro pela Comissão de Trabalho da Câmara, representantes do governo colocaram a venda da empresa como um benefício para o País. O representante do Ministério da Economia, Leandro Moreira, ressaltou, por exemplo, que o valor de mercado da Eletrobras passou de R$ 7,4 bilhões em 2013 para R$ 48 bilhões atualmente. Ele salientou que a perspectiva de desestatização trouxe eficiência e produtividade.
Na ocasião, representantes de duas categorias profissionais, os eletricitários e os urbanitários, se posicionaram contra a privatização da Eletrobras. Gustavo Teixeira, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), afirmou que os investimentos no setor elétrico não dependem da desestatização e que especialistas reforçam o papel significativo das estatais em períodos de crise econômica. Para Ikaro Chaves, do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), a Eletrobras é importante na construção de empreendimentos de grande porte, como hidrelétricas, e é motivo de orgulho nacional.
Esta é, pelo menos, a terceira tentativa que o governo federal faz para tentar realizar a privatização da Chesf desde 2001. A última foi no governo do presidente Michel Temer (MDB) em 2017. O atual Projeto de Lei nº 5877, apresentado pelo governo Bolsonaro à Câmara dos Deputados, tem muitas semelhanças com o elaborado pelo governo anterior.
Em ambos, a privatização ocorreria com a venda das ações da Eletrobras – a dona da Chesf – fazendo com que o governo federal deixe de ser o sócio majoritário da estatal-mãe e das suas subsidiárias. No governo Temer, a União também teria direito a golden share, uma ação que dá o poder de veto ao governo. O atual projeto retirou esse mecanismo, o que foi elogiado por especialistas. Os dois projetos – tanto o de Bolsonaro como o de Temer – deixaram de fora da desestatização a Itaipu, por ser binacional, e a Eletronuclear, por questões que envolvem a segurança nacional.
Ainda no governo Temer, o projeto começou a tramitar, mas faltou uma articulação para garantir a sua aprovação, apesar de o governo ter maioria no Congresso Nacional. Na época, o relator do projeto, o deputado federal José Carlos Aleluia (DEM) chegou a falar que os deputados da base governista “estavam desorganizados” e que existia uma minoria “ruidosa e organizada” trabalhando contra. Os parlamentares da oposição instalaram mais de seis frentes formadas por parlamentares contrários à privatização da Eletrobras e das suas subsidiárias, como Chesf, Furnas, Eletrosul, entre outras. Eles obstruíram várias sessões na Câmara dos Deputados, prejudicando o andamento do projeto de lei. Como 2018 foi um ano eleitoral, muitos parlamentares – incluindo alguns da base governista – não quiseram abraçar a privatização dessas estatais e o projeto foi retirado de pauta.
O atual PL passa por uma situação similar, porque muitos parlamentares vão se candidatar a prefeito em 2020 e não vão defender um projeto impopular às vésperas de uma eleição.
No começo dos anos 2000, o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) também tentou privatizar a Chesf, a maior empresa do Nordeste na época. A decisão fez com que os políticos pernambucanos, dos mais diversos partidos, se unissem em várias manifestações que ocorreram na sede da empresa, no Recife, o que fez o governo recuar.