A agricultora Márcia da Silva Lopes, 46 anos, moradora da comunidade de Bom Jardim, em Quixadá, perdeu quase tudo o que tinha plantado em janeiro esperando que chovesse no início de fevereiro, primeiro mês da quadra chuvosa no Ceará. As chuvas só chegaram no fim do mês, fazendo com que ela tivesse que voltar a plantar as sementes de milho, feijão e gergelim. Se não chove, Márcia depende da água de enxurrada acumulada na cisterna para irrigar a plantação.
Os setores da agricultura mecanizada não costumam se preocupar com a chuva, já que a irrigação é feita por tecnologias que aspergem água independentemente do período do ano. O diretor de Operações da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (Cogerh), Ricardo Adeodato, estima que 70% da água dos reservatórios do estado são usados pela agricultura – mesmo percentual calculado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relação ao uso da água de todo o planeta por essa atividade. Para Adeodato, a geração de empregos por essa atividade justifica a destinação de um alto percentual de água para a agricultura. O presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec), Flávio Saboya, diz que a produção de alimentos é o motivo e a justificativa para o uso da água em larga escala.
Para o professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Alexandra Costa, entretanto, a desigual distribuição da água – feita também a favor da indústria – é uma “injustiça hídrica”, principalmente em um estado de clima semiárido.
“É um absurdo você usar água do semiárido, na quantidade que é usada no Ceará, para a fruticultura irrigada. O primeiro discurso é sobre a produção de alimentos, mas quem produz os alimentos que nós consumimos são os pequenos agricultores, que não têm acesso à irrigação”, critica Costa que é PhD em ciências atmosféricas.
Segundo dados da Cogerh, estão em vigor atualmente cerca de 3,5 mil outorgas (autorizações) de uso da água dos reservatórios públicos, mas o diretor de Operações da companhia garante que o fornecimento de água para os setores produtivos sofreu redução devido à seca. O presidente da Faec estima que, com essa redução, o uso da água na agropecuária esteja em 40%, mas ressalta que, mesmo sem os cortes, o setor não consome mais do que 50%. “Setenta por cento é uma estimativa mundial. Não significa que, no Ceará, consuma-se essa quantidade de água”, afirma. Segundo estudos do professor Alexandre Costa, esse consumo chega a 60%.
Para o especialista da Uece, regular o uso da água, priorizando a distribuição para o consumo humano, deve estar no centro de qualquer plano estratégico. No dia 25 de fevereiro, o governo do estado apresentou o Plano Estadual de Convivência com a Seca que elenca uma série de ações emergenciais (a exemplo da perfuração de poços e da instalação de adutoras de montagem rápida) e estruturantes, como o Eixão das Águas e o Cinturão das Águas.
O Eixão das Águas transpõe as águas do Açude Castanhão, um dos maiores do estado, para Fortaleza e região metropolitana e para o Complexo Portuário e Industrial do Pecém. O Cinturão das Águas, ainda com trechos em construção, deverá receber as águas da transposição do Rio São Francisco e distribuí-las nas bacias hidrográficas do estado.
Embora reconheça a importância da interligação das bacias, o professor destaca a necessidade de que essas águas sirvam prioritariamente à população – o que não está expresso no plano. “Continua-se falando em garantir água para a indústria e para o agronegócio. Esse é o nó: precisamos, sim, de obras de adutora e de interligação de bacias, mas desde que elas sejam planejadas e voltadas realmente para atender à demanda da população. Mas não é só obra que resolve. É política hídrica, com a substituição das atividades produtivas que são grandes consumidoras de água por atividades sustentáveis.”