Há setenta e um anos, em 2 de julho de 1944, o primeiro contingente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) seguia rumo à Europa. Cinco mil homens embarcaram no navio americano General Mann, a maioria deles proveniente do 6º Regimento de Infantaria de Caçapava, no interior de São Paulo. A operação durou vários dias: para despistar possíveis espiões alemães, na época chamados de “quinta coluna”, houve várias simulações de embarque até o dia efetivo, 30 de junho. Também para esconder do inimigo o momento da partida, o navio só zarpou 48 horas depois, iniciando uma viagem perigosa e demorada de quase duas semanas. Era preciso navegar em ziguezague, mudando o curso a cada sete minutos para evitar que submarinos torpedeassem a embarcação (como já haviam feito com 36 de nossos navios mercantes, matando 1.074 pessoas e levando o Brasil, antes neutro, a tomar posição dentro da guerra).
Este foi o início de uma saga que levou mais de 25 mil brasileiros a tomar parte na Segunda Guerra Mundial. Hoje, cerca de mil destes combatentes ainda estão vivos, pelo menos uma dezena dos quais morando no Recife. É o caso de Rigoberto de Souza, de 91 anos.
O então sargento Rigoberto, de 21 anos, se voluntariou para participar da missão e partiu no segundo escalão de combatentes, em 22 de setembro, no navio General Meigs. “Foi um comboio de dois navios, levando o maior contingente enviado à guerra”, relembra ele. Ao contrário do primeiro escalão, formado em sua maioria por paulistas e catarinenses, sua composição era eclética: gente “de Manaus à fronteira do Paraguai”, incluindo um índio xavante de Aquidauana (MS). A maioria dos soldados era de pessoas simples, com pouco estudo. “Havia muitos mineiros que nunca tinham visto o mar. No navio, era um calor infernal, e era obrigatório usar colete salva-vidas o tempo todo, até para dormir. Tudo fedia a suor e óleo”, conta.
O destino do navio era secreto. Quando chegaram ao porto de Nápoles, Rigoberto sentiu o primeiro grande impacto da guerra. O cenário era de destruição, com navios afundados e casas bombardeadas. E a população local vaiava os brasileiros. “Só depois entendemos que era por causa do tom de verde de nossas fardas, igual ao dos alemães. Foi preciso trocar, depois”, diverte-se.
Na Itália, ele passou exatamente um ano. Primeiro, na frente de batalha, onde além do sofrimento da luta em si foi preciso enfrentar, usando roupas inadequadas, um inverno de 20 graus negativos. Cavavam buracos na terra, criando abrigos para se proteger do frio e da neve. “É engraçado, mas os nordestinos resistiram melhor que o pessoal do Sul”, orgulha-se.
A adaptação aos armamentos e às instruções de combate, dentro do modelo americano, foram completas e violentas, mas deixaram espaço para momentos inusitados como a formação de um pelotão de esquiadores, do qual Rigoberto preferiu não participar. “Eu não, quis ficar na terra”, gargalha.
“Tive muito medo, mas nunca quis desertar. Só pensava que no dia seguinte poderia ser pior. Meu capelão, frei Orlando, dizia sempre que todos nós vivíamos em estado de graça e podíamos partir a qualquer momento. Ele, aliás, morreu vítima de uma granada. Era um franciscano alegre, excepcional, que no Brasil fazia sempre sopa para os pobres. Virou patrono do serviço de assistência religiosa do Exército”, relata, emocionado.
O pior de se presenciar, para Rigoberto, foram os atos de violência no período que serviu na tropa de ocupação. “Na linha de frente vi muita gente morrer. Mas quem sofre mais é a população civil, durante e depois da guerra. Houve muita justiça feita pelas próprias mãos, um verdadeiro morticínio entre os italianos, que se dividiam entre os partidários do rei Vítor Emanuel e os de Mussolini”, lamenta.
De volta ao Brasil, junto com muitos companheiros mutilados no corpo e na alma e trazendo algumas condecorações por bravura, Rigoberto pôde contar com o carinho de sua família, no interior da Paraíba. Passou um ano “amando, gozando e querendo bem”, vivendo do soldo acumulado. Na sequência, completou os estudos, interrompidos na quarta série primária. Formou-se em odontologia e, paralelamente, começou a trabalhar como escriturário na Receita Federal, chegando a auditor fiscal.
Em Santa Luzia, terra onde seus pais moravam, conheceu sua companheira por 61 anos, Maria Benides. Casaram e tiveram quatro filhos e sete netos. E até hoje, ele olha de forma lúcida para o período crucial que vivenciou, na juventude: “A guerra me formou como homem. Como menino de interior, nunca tinha visto tanta desgraça. Fui imaturo, despreparado, e voltei com outra concepção de vida. Mas o senso de nacionalidade eu já tinha. Minha família sempre serviu ao País, a começar pelo meu pai. Eu e vários irmãos também trabalhamos no serviço público, sem desvirtuar nossas funções. Assim, eu posso me orgulhar de dizer que servi ao Brasil por toda a minha vida”.
Matéria publicada originalmente no dia 29 de junho de 2014, no JC Mais.