Constituinte 'popular' de Maduro aprofunda crise na Venezuela

Ruas de Caracas foram fechadas por manifestações contra convocação do presidente
AFP
Publicado em 02/05/2017 às 23:40
Ruas de Caracas foram fechadas por manifestações contra convocação do presidente Foto: Foto: FEDERICO PARRA / AFP


Centenas de manifestantes bloquearam ruas e estradas em Caracas e em outras cidades da Venezuela nesta terça-feira (2), em protesto contra a convocação pelo presidente Nicolás Maduro de uma Assembleia Constituinte.

Panelas e buzinas soaram nas ruas bloqueadas com barricadas de lixo. Uma enorme bandeira da Venezuela foi aberta no chão nos arredores de Altamira, reduto da oposição no leste da capital.

Após o anúncio, a maioria opositora no Parlamento pediu à Força Armada que "respeite de maneira fiel o marco jurídico e constitucional, sem cumprir ordens superiores que violem os direitos humanos e ignorem princípios fundamentais da Constituição". 

Mas os militares avaliam que Maduro traz "uma proposta revolucionária, constitucional e profundamente democrática que nós apoiamos", segundo o ministro da Defesa, Vladimir Padrino.

Para o ministro, a convocação é "constitucional" e "não pode haver algo mais democrático do que convocar o poder constituinte original que é o povo".

Pilhas de lixo e árvores derrubadas também cortaram a passagem em Montalban, no oeste, do outro lado da cidade.

O tráfego de veículos na estrada Francisco Fajardo, que atravessa Caracas de leste a oeste, ficou engarrafado, enquanto centenas de pessoas caminhavam para seus empregos.

Muito pressionado após um mês de protestos da oposição que exigiam sua saída do poder com eleições gerais, Maduro deu uma guinada na crise na segunda-feira (1º) ao convocar uma Constituinte "popular": os 500 integrantes da assembleia não serão eleitos, porém, pelo voto universal, e sim por setores sociais e por comunidades.

Maduro citou um evento "histórico para aprofundar a revolução" e deter a "arremetida golpista" da oposição, ao assinar o decreto que ativa o processo na segunda-feira à noite, ao lado dos ministros e da cúpula militar.

Reações 

Em uma mensagem gravada em vídeo, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, considerou que "a proposta anunciada é errada, inconstitucional e fraudulenta", alegando que "o povo é o único que conta com o poder constituinte".

Para o governo americano, a instalação de uma Assembleia Constituinte não parece ser um esforço genuíno para alcançar uma reconciliação que permita ao país superar a crise.

"Nossa preocupação é que, pelas indicações iniciais, este processo não se perfila como um esforço genuíno de reconciliação nacional, que é do que a Venezuela realmente precisa", avaliou o subsecretário adjunto para o Hemisfério Ocidental, Michael Fitzpatrick.

Segundo ele, Washington tem "sérias preocupações com as motivações dessa convocação", porque ignora "a vontade dos venezuelanos" e "erode a democracia" nesse país.

"Não temos muitos detalhes ainda, mas claramente uma das motivações para isso é não ter de realizar as eleições municipais, ou as eleições regionais", insistiu.

O Brasil também reagiu, chamando de "golpe" a iniciativa de Maduro.

"Qualifico como um golpe a proposta do presidente Nicolás Maduro de convocar uma Assembleia Constituinte na Venezuela. É mais um momento de ruptura da ordem democrática, contrariando a própria Constituição do país", afirmou o chanceler Aloysio Nunes, em uma mensagem divulgada em seu Facebook.

Depois de afirmar que o governo de Caracas se tornou uma ditadura, o ministro das Relações Exteriores ressaltou que essa Constituinte não será eleita pelo voto direto dos venezuelanos, mas por "organizações sociais controladas pelo presidente Maduro para fazer uma Constituição de acordo com o que ele quer".

 Eleições sim, mas não gerais 

Maduro afirmou que pretende "reforçar" a Constituição de 1999 para estabelecer "novas formas de democracia participativa" e um modelo econômico que não dependa da renda do petróleo.

"Esta Constituinte anunciada por Maduro é uma manipulação para escapar das eleições. O meu voto não vale mais ou menos do que o de ninguém", disse à AFP Raúl Hernández, um estudante universitário de 22 anos que bloqueava com cerca de 100 pessoas a avenida Francisco de Miranda, uma das principais estradas do leste de Caracas.

"É uma medida desesperada de um governo que sabe que não pode convocar eleições, porque vai perder e recorre à polarização", disse à AFP o analista Diego Moya-Ocampos, do IHS Markit Country Risk de Londres, ao lembrar que mais de 70% dos venezuelanos rejeitam o governo de Maduro, segundo pesquisas.

Ainda não está claro o que acontecerá com o calendário eleitoral. De acordo com a Constituição, as eleições para governadores deveriam ter acontecido em 2016, mas foram adiadas. A votação dos prefeitos está programada para este ano, e a eleição presidencial, para o fim de 2018.

"A Constituinte sem eleição democrática une a oposição, isola mais o governo e reforça a luta de rua. Apenas agudiza a crise", opinou o analista Luis Vicente León.

Maduro ainda deve enviar à Justiça eleitoral as bases, pelas quais serão escolhidos os integrantes da Assembleia, mas já antecipou que terá forte presença de estruturas comunais, onde o governo tem grande influência.

"Não será uma Constituinte de partidos políticos, nem de elites, e sim uma Constituinte operária, comunal, camponesa", explicou.

De acordo com a lei, nenhum poder do Estado poderá impedir as decisões da "Assembleia Constituinte popular" uma vez instalada.

Para o constitucionalista José Ignacio Hernández, o governo pretende "garantir o controle" sobre a "Assembleia popular" e consolidar a "usurpação de funções" do Parlamento.

A oposição protesta nas ruas desde 1º de abril, depois que o principal tribunal de Justiça do país assumiu temporariamente as funções do Parlamento. Desde então, 28 pessoas morreram em incidentes violentos. Governo e oposição trocam acusações sobre a responsabilidade pela escalada da crise.

Maduro, cujo mandato vai até 2019, justificou a decisão com a alegação de que a oposição rejeitou o diálogo e as eleições de governadores por buscar em 2016 um referendo revogatório de seu mandato, que resultou em fracasso.

As manifestações acontecem em meio a uma profunda crise econômica, com uma severa escassez de alimentos e remédios e a maior inflação do mundo, além de elevados níveis de criminalidade.

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