Passados 50 anos, esquerda brasileira ainda não fez a autocrítica sobre 1964

Ex-preso político, José Arlindo diz que esquerda comente dois erros: dissociada da realidade, não previu o golpe; isolada da sociedade, optou pela luta armada
Ayrton Maciel
Publicado em 05/04/2014 às 7:00
Ex-preso político, José Arlindo diz que esquerda comente dois erros: dissociada da realidade, não previu o golpe; isolada da sociedade, optou pela luta armada Foto: Foto: Igo Bione/ JC Imagem


Dissociada da realidade do Brasil, distante das organizações sociais e sem lideranças relevantes nos movimentos de massa e nos sindicatos, uma vez que os líderes haviam migrado para o setor público. Esse era o estágio no qual chegou a esquerda em 1964, que tinha à frente o Partido Comunista Brasileiro (PCB, o Partidão) como a locomotiva das mudanças no País, nos dias que antecederam o 31 de março.

Passados 50 anos do golpe, a esquerda brasileira - na avaliação do ex-militante estudantil, ex-preso político, sociólogo e professor do programa de pós–graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPA), José Arlindo Soares - ainda não fez a autocrítica da sua participação no antes e no pós-64.

“Houve um equívoco na luta armada porque ela era incompatível com a realidade nacional, com as relações de forças, com a cultura nacional, o que provocou o isolamento da esquerda”, deduz José Arlindo em entrevista ao Jornal do Commercio sobre o golpe, a ditadura e as consequências de 64.

JORNAL DO COMMERCIO – Nos meses que antecederam o Golpe de 64, a esquerda fez uma avaliação equivocada de cenário e circunstâncias), por isso também teve um diagnóstico equivocado? Não dimensionou que esse processo poderia ser quebrado por um golpe?
JOSÉ ARLINDO SOARES -
Foi um golpe não só militar, mas apoiado por setores civis e com a omissão do Congresso Nacional, porque a maioria do Congresso, que sustentava o próprio governo, a aliança PTB-PSD não apoiava as propostas de reforma de base. Uma minoria do PSD apoiava as reformas. Então, quando veio o golpe, veio a omissão. Juscelino Kubischeck votou na eleição indireta para a eleição de Castelo Branco (Humberto Alencar, general primeiro presidente militar) e orientou o voto. Ulisses Guimarães, também. Depois, Ulisses muda de posição ao longo da resistência. E só uma parte minoritária do PTB, que foi cassada, é que estava defendo (as reformas de base). Quando estudei o governo Arraes (1963-1964), analisei detidamente todas as greves de 1946 a 1964, e conclui que o movimento de massa vai saindo do setor privado e se abrigando no setor público. Ele ele ficou sem nenhuma organização de base no momento da resistência. Teve alguma resistência de um dia no setor ferroviário, alguma coisa nos bancários, uma passeata muito espontânea contra a deposição e teve a resistência de dignidade de Arraes ao não renunciar diante dos militares.Mas não um movimento orgânico de resistência.

JC – O senhor diz que a esquerda tinha perdido a capacidade de diálogo, de falar para as massas, e se limitava a falar para o mesmo segmento da sociedade - aquele ideologizado, a própria esquerda - terminou por contribuir para o Golpe de 64?
JOSÉ ARLINDO 
– Existia grande movimentos de massa, mas não existia uma análise da relação de forças conjunturais, da conjuntura, do entorno. Por exemplo, a proposta de reformas de base teria de ser aprovada pela maioria de um Congresso que era conservador. A aliança que sustentava o Jango não tinha solidez ideológica para aprovar aquela reforma de base e a esquerda trabalhava como se aquilo fosse um processo linear que ia desembocar na reforma de base. Para fazer as reformas de base, ou teria de ter paciência e esperar o longo processo de eleições que teriam pela frente ou fazer uma ruptura institucional como Brizola propôs no comício do dia 13 (de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro). Só que para fazer uma ruptura institucional não era apenas contar aquele povo que estava ali, era verificar como é que estavam as Forças Armadas, e se existia um empresariado nacional capaz de apoiar essa aliança desenvolvimentista. Acho que faltou essa análise de conjuntura de relações força, isso sem falar na questão internacional e no aguçamento da Guerra Fria com os Estados Unidos incentivando a deposição de governos progressistas.

JC - Então, a esquerda estava convencida de que se encontrava tão próxima do governo que achava irreversível o processo para chegar ao poder?
JOSÉ ARLINDO –
Ela tinha perdido o contato com a realidade e com as organizações de base. Os Castelistas (militares alinhados com Castelo Branco) achavam que, no primeiro momento, eles não estavam unificados sobre qual seria a metodologia, o modelo de governo que queriam. Tanto que os partidos anteriores ao golpe continuaram existindo e chegaram mesmo a realizar eleições, em 1965, para governadores de vários Estados, tendo a oposição, com candidatos muitos moderados, ganhando em dois Estados. Ai, veio a pressão dos mais radicais para endurecer o regime, e o AI-2 inicialmente cassou os comunistas, os líderes mais proeminente que poderiam fazer alianças com comunistas, sindicalistas e intelectuais. Os Castelistas entendiam que, sem esse grupo, o regime podia continuar normalmente. Do outro lado, o grupo mais de direita e estruturado organicamente, achava que era preciso fazer uma limpeza radical na classe política e mudar todo o sistema. Foi quando o AI-2 acabou com os partidos e tirou as eleições diretas. É a radicalização do governo em cima da classe política. É ai que teve a oposição de Carlos Lacerda, Juscelino, porque eles e alguns políticos consideravam que os militares iam só arrumar a casa para devolver o País à normalidade democrática.

JC - Esse endurecimento não foi suficiente para tranqüilizar o regime?
JOSÉ ARLINDO -
Porque foi um período muito ruim para o governo militar. Há uma crise econômica, o monetarismo desorganiza a economia do País, há uma depressão e uma parte da legitimidade adquirida na classe média começa a perder força. Nasce aí uma outra oposição, que não é mais aquela dos líderes políticos, mas do novo segmento que é a classe média, através do movimento estudantil, mais forte em São Paulo, Rio e Ceará. A repressão também era desigual, ainda não tinha sido instituído o sistema unificado de repressão pelo modelo DOI-Codi (Departamento de Operação e Informação, do Exército). Existia, mas ainda não sistematizada pelo regime militar. Essa fase do movimento estudantil foi uma fase de ouro da resistência, porque aproximou a oposição da sociedade.

JC - A relação que tinha sido perdida pela esquerda, antes do golpe, é retomada a partir dos estudantes pós-golpe?
JOSÉ ARLINDO -
Exatamente. Essa resistência aproxima, então se faz um movimento de ruas com apoio das famílias. Havia uma grande aceitação daqueles estudantes na rua e de condenação e repúdio à ditadura e aos métodos de repressão. Ao mesmo tempo, se articulou alianças junto ao que dos partidos políticos, no caso o MDB (oposição permitida).

JC - Passados 50 anos do Golpe de 64, a esquerda não fez a autocrítica da sua participação nos fatos e circunstâncias pré-Golpe de 64. Por quê?
JOSÉ ARLINDO -
Aí começa um outro grande equívoco da esquerda que é muito difícil falar, porque muitas pessoas tiveram suas vidas sacrificadas. Entre 64 e 68, a direita se organizava, tentava se unificar. Não foi fácil a luta entre as diversas facções militares, não foi fácil. Ela se organizou no AI-5. A pressão das massa, a passeata dos 100 mil (no Rio, de protesto contra a ditadura militar, em junho de 1968), a presença forte de intelectuais nas ruas, no teatro, na música popular, a greve de Osasco (São Paulo), isso fortaleceu a ala mais à direita que queria estruturar um sistema de repressão. Nesse ínterim, formou-se à margem do regime político um sistema repressivo. Claro que os caras (líderes militares) tinham o domínio, podiam não saber os detalhes, mas sabiam que tinha um sistema funcionando, que estava se organizando até 68. Não estou dizendo que o sistema foi provocado, que a repressão foi provocada pelos estudantes. Não, não foi. Os militares tinham certeza de que era preciso recrudescer a repressão. Eles estavam só estabelecendo o momento. No final de 68, depois do Congresso (clandestino) da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna (São Paulo), uma parte da esquerda estava convencida que era preciso partir para a luta armada.

JC – A inexistência da autocrítica sobre 64, de forma sistemática e coletiva, denota a dificuldade de assumir responsabilidades?
JOSÉ ARLINDO -
É, não tem. Todo mundo tem dificuldade de se abrir completamente, e vai ter muitas discussões sobre isso. Essa questão da luta armada é uma coisa difícil (de discutir) pelo sacrifício pessoal que as pessoas tiveram. Não digo pré-64. O Prestes (Luiz Carlos) nunca explicou porque é que ele disse que estavam no governo, mas não estavam no poder, uma semana antes do golpe. Agora, a crítica não pode ser confundida como um contraditório da anistia. Uma coisa é o esquema da repressão, que haveria de qualquer forma, e que mereceria e merece punição, é violação dos direitos humanos. E é merecida a anistia aos presos. Outra coisa é dizer que houve um equívoco na luta armada porque (ela) era incompatível com a realidade nacional, era incompatível com as relações de forças, com a cultura nacional e provocou o isolamento da esquerda durante alguns anos”.

JC - Então, a esquerda equivocou-se na análise antes de 64 e cometeu um segundo equívoco de avaliação em 68, ao optar pela luta armada?
JOSÉ ARLINDO -
Eu acho. O PCB não foi (para a luta armada), embora ele sofra (também) a repressão. Uma parte da esquerda, principalmente a jovem e estudantil, que fez uma crítica ao Partidão pela inanição, sai e vai para o PCBR, cria-se a Ação Libertadora Nacional (ALN). Boa parte dos grupos era dissidência do Partidão. Optam pela luta armada, que favoreceu ao isolamento, que levou a esquerda para um gueto. Um exemplo foi a Guerrilha do Araguaia, do PCdoB, que na concepção do campo cercar a cidade, vai se dar numa área absolutamente inóspita, sem nenhuma concentração de camponeses e nenhuma concentração de pequenas propriedades, não caracterizando a contradição do latifúndio. Era uma área de floresta. Longe das massas, longe de qualquer organização operária e de qualquer organização camponesa. Concepção que já havia fracassado na África e na Bolívia ( com Che Guevara).

JC - Mas era o mesmo modelo de Cuba?
JOSÉ ARLINDO -
Um ilha, um País historicamente diferente. Aqui, a esquerda se isola, tanto a esquerda armada como a que eu pertencia, que também entra para a clandestinidade, o que foi uma imposição do AI-5. Era preciso organizar e mobilizar os sindicatos para uma insurreição. Só que esse discurso, que não era armado, era também um discurso que não batia na consciência da classe operária. Nós nunca conseguimos mobilizar as massas nessa direção da insurreição. Tínhamos uma participação na greve de Osasco (siderúrgicas em São Paulo), em 1968, mas em uma frente muito ampla. Já se disse que isso aguçou a repressão, pode até ter favorecido, mas a repressão já tinha uma lógica, que vinha se organizando dentro do sistema. Uma repressão paralela, embora consentida, ao regime militar. Falava-se à época que havia o sistema, que era aquilo que não se via, mas que existia. O sistema era o regime (o governo). Não acho que a luta armado tenha favorecido à repressão. Ela pode ter sido utilizada como pretexto, mas já havia uma lógica. Depois de 1967, o regime já tinha decido por aniquilar, não mais combater, mas aniquilar a esquerda.

JC - No final de 68, o general Costa e Silva decreta o AI-5, rasgando todos os direitos civis constitucionais, cassando mandatos e fechando o Congresso.
JOSÉ ARLINDO -
O regime se reorganizou e tem início o milagre econômico. De 68 a 1973, a média anual de crescimento foi de 9,5%. Período de maior enfrentamento entre o regime e a luta armada. Perdemos os laços (sociais). Enquanto na fase da mobilização de massas (pré-68), havia o apoio de familiares e da sociedade, quando vem a fase da clandestinidade, os grupos (de resistência) ficam dependentes da sobrevivência, numa penúria (para atividades, ações, deslocamentos, contatos). Cada vez mais se isolavam e até o trabalho de massa ia se perdendo os contatos. A esquerda armada achava que tinha o contato (com a sociedade) pela propaganda armada, até via momentos cinematográficos, como o sequestro do embaixador norte-americano ( Charles Burke Elbrick, no Rio), e a desapropriação de armamentos (4º Regimento de Infantaria de Quitaúna, São Paulo) por Carlos Lamarca (capitão do Exército). Mas a continuidade disso levou ao homem o comum o medo e o isolamento (dos grupos).

JC – O maior exemplo disso foi o do PCdoB ao deflagrar a Guerrilha do Araguaia?
JOSÉ ARLINDO -
A idéia das organizações era a de realizar ações armadas urbanas para se fortalecer e irem para o campo. Todas tinham essa mesma perspectiva. O PCdoB decidiu ir para a guerrilha rural, numa área incompatível com o próprio modelo que pregava, que era a lógica de Mao Tse Tung (líder da Revolução Chinesa). Mao trabalhou nas próprias cidades, mobilizando onde havia trabalhadores, onde existiam as contradições. No Araguaia, não tinha a base da contradição, que era a população rural organizada. Um equívoco.

JC - No começo dos anos 70, o povo começa a sinalizar que estava esgotado e queria liberdade?
JOSÉ ARLINDO -
Em 1970, já havia sido os votos nulos. Teve uma repercussão o discurso (do regime) contra a esquerda, que quase aniquila com o MDB. A população estava completamente desmotivada para a política. Havia a repressão, ausência de qualquer liberdade e aí veio a avalanche de votos nulos. Em 1973, começam os sinais da crise econômica, a retomada da inflação e, nas eleições de 1974, vem a terceira fase da resistência. É a própria população que indica o caminho. A população indica o voto no MDB. Ganhou em 22 Estados ( eleição para o Senado). Houve uma repercussão no mundo, mesmo assim a repressão ainda matou parte do Comitê Central do PCB. Mas, aquela vitória do MDB foi responsável pela abertura lenta, gradual e segura do general (Ernesto) Geisel.

JC - O regime não tinha mais como postergar o processo para o seu fim?
JOSÉ ARLINDO -
A gente tendia a pensar que só existe vida inteligente dentro dos partidos. Havia uma movimentação na sociedade, a Igreja tinha ampliado seus tentáculos sociais para os bairros, profissionais liberais começavam a se organizar e davam vitalidade à oposição ao regime. Deduzi: existe vida inteligente fora dos partidos marxistas. Existe uma sociedade nova, um campo de frente democrática eleitoral e social de resistência. Então, a legitimidade do governo militar é abalada na classe média, entre setores do empresariado, ressurge o movimento estudantil e as denúncias de violação dos direitos humanos toma uma dimensão maior, que sai da base da Igreja e é assumida por parte da sua cúpula. Isso vai mudando bastante as relações de força, que se estabelece na discussão sobre a anistia (1979), as libertação dos presos políticos e a volta dos exilados.

JC - Foi a última fase da resistência ao Golpe de 64?
JOSÉ ARLINDO -
A última fase da resistência é essa, na qual novas forças entram em cena, novos personagens, organizações sociais, o chamado novo sindicalismo, que é oriundo do velho, que mudou por dentro. Aliás, a estrutura sindical é a coisa mais duradoura no Brasil (vem do Estado Novo), passou pela redemocratização de 1946 e os militares mantiveram a sua estrutura. O sindicalismo continua seguindo a sua trajetória tradicional.

JC - E a geração de 1968, por onde anda?
JOSÉ ARLINDO -
Boa parte voltou-se para atividades técnicas ao sair da prisão, outra parte menor tornou-se militante e dirigente política. Uma parte no PT, outros no PSDB. Muitos trabalharam nos movimentos sociais. A geração maior entre 64 e 68, do movimento estudantil, chegou parcialmente ao poder através de Dilma. Porque Lula não é nem dessa geração, ele chega via estrutura sindical quando a ditadura está já no período claudicante. Uma parte dos que tiveram militância clandestina chegou ao poder. Assumiu que o País teria de marchar para uma democracia ampliada, social, sem aquela visão do socialismo de modelo que tinha propostas de estatização dos meios de produção, o Estado centralizado, o corpo do partido comandar o Estado.

JC - É o caso do PT?
JOSÉ ARLINDO –
Acho que é o caso de alguns episódios. Vez por outra se vê pessoas falando em controle de imprensa. Aonde ocorreu isso, no mundo, levou à ditadura. Essa esquerda podia ser mais moderna. Não ficar namorando o Irã e mantendo laços com ditadores africanos. Acho que a esquerda não absorveu totalmente suas próprias experiências, suas responsabilidades. Embora que, em sua maioria, haja responsabilidade com o Estado de Direito. A Dilma tem responsabilidade com o Estado de Direito, ela tem responsabilidade.

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