Apesar das diferenças, Ulysses Guimarães considerava Jarbas Vasconcelos como um filho

Segundo trechos do livro "A História de Mora", publicado no Globo.com, Ulysses considerava Jarbas o seu herdeiro político
Fernando Castilho
Publicado em 26/03/2012 às 0:17
Segundo trechos do livro "A História de Mora", publicado no Globo.com, Ulysses considerava Jarbas o seu herdeiro político Foto: Foto: Marcelo Soares/JC Imagem


No capitulo deste semana, do livro "A História de Mora", publicado neste domingo no site globo.com, o jornalista Jorge Bastos Moreno, colunista do jornal O Globo, narra episódios da redemocratização pelo olhar da mulher de Ulysses Guimarães. Ele revela que, apesar das diferenças políticas, Jarbas Vasconcelos e Ulysses tinham personalidades parecidas a ponto do velho líder do PMDB considera-lo seu herdeiro político.

Segundo trechos do livro, logo após chegar a Brasília, Jarbas foi ingressando no chamado grupo "autêntico" do MDB, facção que fazia oposição à cúpula partidária liderada por Ulysses. Moreno diz, através de Mora, que "Jarbas é esquisito, mas mais esquisito foi meu marido, que logo se encantou com o rapaz, a ponto de considerá-lo filho".

"Confesso que nunca entendi essa relação. Algumas vezes, durante a campanha presidencial de 89, quando os dois estiveram mais próximos, assisti a algumas conversas entre eles. Seu eu contar, vocês não irão acreditar.

Leia o Capítulo publicado no site Globo.com

História de Mora: Jarbas, o escolhido político de Ulysses

Apesar das diferenças políticas, os dois tinham personalidades parecidas
 
Se vocês acham que as histórias com Renato Archer acabaram, ledo engano. Esse personagem está umbilicalmente ligado ao meu marido, que dele se despediu poucos minutos antes de desaparecer no mar. Faço esse aviso porque hoje vou trocar de personagem. Vou falar de um cidadão muito esquisito chamado Jarbas Vasconcelos. Esse moço, pernambucano, sisudo, desconfiado como todo nordestino, fumante inveterado, não tinha nada a ver com meu marido. Pelo contrário, chegou a Brasília e foi logo ingressando no chamado grupo "autêntico" do MDB, facção que fazia oposição à cúpula partidária liderada por Ulysses. Se digo que Jarbas é esquisito, mais esquisito foi meu marido, que logo se encantou com o rapaz, a ponto de considerá-lo filho.

Os que conheceram Ulysses de verdade sabem que não exagero: se meu marido pudesse escolher um sucessor político, seu herdeiro seria Jarbas Vasconcelos.

Confesso que nunca entendi essa relação. Algumas vezes, durante a campanha presidencial de 89, quando os dois estiveram mais próximos, assisti a algumas conversas entre eles. Se eu contar, vocês não irão acreditar. Os encontros testemunhados por mim entre meu marido e Jarbas eram sensacionais. Sentados sempre frente a frente, os lapsos de silêncio eram maiores do que os diálogos monossilábicos. Os dois ficavam olhando para o teto, até que um puxava assunto. Aí era olho no olho. Eu reparava que o olhar do meu marido a Jarbas não era desafiador. Eu nem ousava me meter no meio dos dois. Mas, quando Jarbas saía, eu implicava:

"Ulysses, o que você viu nesse rapaz? Ele tem a cara fechada, de poucos amigos. Esse homem não sorri, Ulysses".

Ulysses defendia. "O Jarbas sorri, sim. Só que seu sorriso é mecânico, não é de aeromoça. Eu também sou assim.
A única vez que soube que Jarbas soltou uma gargalhada foi num comício em Recife. A banda do MDB liderada por Tancredo tinha aceitado discutir a proposta de uma reforma política que a ditadura queria impor ao Congresso. Meu marido e Jarbas pediam apoio nas ruas contra o pacote autoritário. Ulysses sabia sentir a multidão. A plateia ali, na porta da Assembleia de Pernambuco, era sua. Ele não teve dúvidas e levou o povo ao delírio".

No seu velho estilo cênico, meu marido começava conversando. "Meus amigos, essa gente que aí está (nunca dizia o nome do ditador de plantão, era sempre "essa gente que aí está") inventa cada coisa. Agora, inventaram a tal de reforma. Ora, a gente reforma aquilo que é bom, um sofá, uma geladeira... E, aí, erguia os braços, ia para frente do palanque e gritava como alguém possuído pelo demônio: reformar o arbítrio é confirmar a sua existência. Arbítrio se extirpa, como um câncer!"

E retomava rapidamente a "conversa" com a plateia, já em outro tom de voz, mais veemente. "Essa reforma é um pecado contra a democracia. Ninguém reforma o pecado. A mulher adúltera, por exemplo, não diz a Deus nem ao padre: "Vim reformar meu pecado. Em vez de trair meu marido todos os dias, passarei a fazê-lo apenas às segundas, quartas e sextas. E, em vez de ter dois amantes, passarei a ter um só. Assim como o ladrão, o vagabundo, o assassino, o proxeneta não diz ao juiz e ao delegado: "Vou reformar meu pecado; em vez de matar e roubar, agora só vou estuprar e furtar".

E voltava para o palco, aos berros. "Dizem que querem ser democratas! Democrata não trai a democracia! Essa é uma reforma adúltera, vagabunda e proxeneta!" Ulysses me disse que Jarbas parecia um menino e não parava de gargalhar.

Estão chocados? Não fiquem, por favor! Meu marido falava a língua do povo. Na campanha contra Figueiredo, o candidato do PMDB, general Euler Bentes Monteiro, teve um diálogo com Ulysses, que ele nunca mais parou de repetir. "Doutor Ulysses, conversando, o senhor parece que está dormindo. Quando está nos palanques, o senhor vira um demônio! Aí eu me assusto com a sua agilidade, com seus movimentos em cena! O senhor se transforma em ator!

"Mas eu sou um ator. Sabe, general, frequentei muito o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Lá aprendi com o meu amigo Ziembinski que, quando o homem acredita naquilo que faz, quando tem tesão naquilo que faz, ele é ator. A política, meu caro general, está cheia de canastrões. Não se iluda, general, os quartéis também. Do contrário, o senhor e eu não estaríamos aqui, com a idade que já temos, arriscando nossas vidas. O senhor estaria tomando sua água de coco, na sacada do seu apartamento lá da Figueiredo Magalhães, em Copacabana, e eu, na fazenda do Severo Gomes, jogando bocha, tomando cachaça e falando mal do doutor Tancredo de Almeida Neves.

Voltando ao nosso personagem, aos poucos passei a prestar mais atenção nesse rapaz e comecei a notar também que, ao contrário do que eu achava inicialmente, era muito parecido com o meu marido. Jarbas não inibia necessariamente as pessoas, mas impunha respeito, autoridade. Vejam as ironias da vida: como soldado, Jarbas protegia o Palácio das Princesas, habitado por Miguel Arraes. Depois, como presidente do partido em Pernambuco, trouxe Arraes para o PMDB. Jarbas presidiu o PMDB nacional enquanto meu marido foi candidato.

Nunca houve sequer um ruído na sua relação com Ulysses, nem no momento delicado da decisão de ir ao Colégio Eleitoral. Jarbas era contra e anunciou que não votaria em Tancredo por causa do tipo de eleição e por causa de Sarney, não sei se nessa ordem. Hoje, seguramente, acho que Jarbas não votaria em Sarney, sem se importar com o tipo de eleição.

Jarbas pagou, politicamente, um preço muito alto por não ter votado em Tancredo. Sua posição, claro, respingou no meu marido. Tancredo cobrou duramente de Ulysses, numa daquelas conversas de se arrepiar. "Ulysses, Jarbas é você, e você é Jarbas. O voto dele não vai alterar os resultados. Mas é um voto simbólico. É um absurdo! É como se Nelson Carneiro, nosso querido amigo, dissesse que não vai votar em mim. Esse moço é tudo aquilo que você gostaria de ser, mas, ainda bem, não tem coragem de ser: inconsequente, extremado, rancoroso! Até o Arraes está comigo! O Arraes hoje está à direita desse maluco! Quando você deixou o MDB, quem foi na tua casa, Tancredo, pedir para você não cometer aquela besteira?

"A conversa não foi na minha casa, foi na Biblioteca da Câmara. Mas o Jarbas me pediu um absurdo: que eu fosse para o PMDB, mas sem levar o Chagas (Chagas Freitas, ex-governador do Rio).

"Então, o Jarbas não foi desleal contigo. E tudo o que ele falou aconteceu: seu projeto de partido foi um fracasso. Agora, o Jarbas colocou na cabeça que Sarney é outro projeto ruim. Ninguém vai convencê-lo do contrário. Cá para nós, e se ele estiver certo, Tancredo?

"Não quero nem estar mais aqui para conferir!"

E o absurdo acabou acontecendo. Nelson Carneiro também não votou em Tancredo.

Certo dia, quando não se tinha ainda margem de segurança nos votos do Colégio Eleitoral, Tancredo recebeu a visita do amigo e quase caiu da cadeira ao ouvir, ainda na porta. "Tancredo, eu vim aqui dizer que eu vou te trair. Vou votar no Maluf!"

E Nelson justificou. "Eu estava morrendo no hospital em São Paulo, nem a sonda funcionava mais. Eu não  conseguia mais urinar. O Paulo Maluf soube e ficou enlouquecido".

E, com voz embargada pela emoção, Nelson Carneiro prosseguiu. "O Maluf ligava a toda hora, dava bronca nos médicos, trocou vários deles, pedia informações a especialistas no exterior. Enfim, fez o diabo. Quando consegui urinar, eu chorei de emoção. Ele me ligou em seguida, e aí chorei de novo, junto com ele.

E, quase aos prantos, comoveu Tancredo. "O Maluf em nenhum momento pediu meu voto. Ele sabe que voto em você, mas eu não me sentirei bem votando contra ele.

Aí entra o estadista Tancredo de Almeida Neves. "Se, depois de tudo isso, você ainda dissesse que votaria em mim, quem não se sentiria confortável seria eu. Por conhecer a retidão do seu caráter, Nelson, e a fidelidade sua a mim, eu me sentiria conspurcando a sua dignidade. Paradoxalmente, a nobreza de seu gesto, ao mesmo tempo em que me faz sentir muito mais orgulhoso do que antes em ter a sua inquestionável estima, enche meu coração de tristeza por não ser eu o agraciado pelo voto mais nobre em que acaba de se transformar a sua decisão. Um dia alguém terá de tornar pública esta nossa conversa para que, quando contarem a história da retomada da democracia neste país, depois de longos anos de arbítrio, saibam os brasileiros que existiram e existirão sempre homens dignos no nosso Parlamento. E que mesmo cidadãos com a ganância sem limites, como Maluf, são capazes, às vezes, de grandes gestos; poucos, mas grandes gestos!"

Tancredo e Nelson deram um longo, comovente e forte abraço, desses raros nos homens frios da política. E, ainda enxugando as lágrimas com o lenço, Tancredo não perdeu a peraltice ao se despedir do velho amigo. "Não vai dizer ao Ulysses, se não, ele me expulsa do partido, mas, depois de tudo isso, até eu fico com vontade de votar nesse danado do Maluf".

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