“O principal direito pelo qual a gente luta, é o direito de existir. É o direito de ser vista como uma pessoa normal.” Aos 28 anos, Robeyoncé Lima é uma mulher negra excepcional. Entrou na concorrida Faculdade de Direito do Recife, estagiou na Secretaria da Fazenda, no Tribunal de Justiça de Pernambuco, na Petrobras e na Justiça Federal, passou de primeira no exame da OAB e foi nomeada assessora jurídica na Câmara do Recife. Seu maior exemplo, porém, é ser a primeira advogada trans de Pernambuco e a primeira no Norte e Nordeste a poder exibir o nome social na carteira da OAB.
Desde o início do ano, Robeyoncé transita de salto alto pela mesma Câmara do Recife onde os três vereadores mais votados são do segmento evangélico. Vai fazer assessoria jurídica do vereador Ivan Moraes (PSOL), ajudando a formular requerimentos e projetos de Lei. “Só a minha presença aqui já desperta o debate sobre sexualidade e gênero. O corpo da gente, em qualquer lugar que esteja, fala alguma coisa”, diz. No Diário Oficial, a nomeação ainda cita um nome que ela não reconhece. Um processo administrativo, porém, pede que seja reconhecido o nome que ela escolheu para si. “A princípio, não tem sentido nenhum mais de uma dezena de vereadores aqui usarem o nome social e eu, uma servidora, não poder”, defende. A Gerência de Livre Orientação Sexual (Glos) da Prefeitura do Recife discute a adoção do nome social no serviço público municipal.
Ivan é só elogios a jovem que “só tirou nota boa” no curso de Direito. O vereador montou o próprio gabinete da forma mais diversa possível: são nove homens e nove mulheres, entes os quais há negros, homossexuais, bissexuais, pessoas com deficiência. “Ninguém veio para dar pinta de trans, nem para dar pinta de negro ou de mulher. São todos grandes quadros técnicos em suas áreas. E juntos representam a diversidade da população brasileira”, explica o vereador.
No segundo estado do País que mais mata transexuais e travestis, segundo relatório de 2013 do Ministério de Direitos Humanos, ter emprego é exceção. Robeyoncé a primeira servidora trans da Câmara e a segunda no Legislativo de Pernambuco (no ano passado, Fabianna Melo Oliveira assumiu um cargo na Alepe). Sua experiência na faculdade inclui passagem por órgãos públicos cobiçados pelos estudantes de Direitos. Públicos pois ninguém poderia retirá-la da lista de classificados numa seleção só por ser uma mulher trans, ao contrário de escritórios privados. “É importante essa presença da gente nos espaços públicos. Até para desmistificar a ideia de que trans e travesti é só a noite, numa esquina, fazendo programa. Tem que trazer a trans para a luz do dia.”
Robeyoncé ainda estava em transição quando ingressou na Faculdade de Direito. E se apresentava como um homem homossexual; não como a mulher trans hétero que é hoje. Os dois semestres inicias foram os mais difíceis, inclusive pela resistência institucional em relação ao nome. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) regulamentou o uso do nome social há apenas dois anos. Mesmo assim, ela conta, o ambiente da faculdade foi libertador e a fez ter contato com discussões sobre gênero. No fim, os colegas escolheram “Robeyoncé” como nome da turma.
Nesta segunda-feira (30), Robeyoncé se tornará a segunda advogada trans do País a receber uma certidão que garante o uso do nome social na carteira da OAB. A primeira foi Márcia Rocha, de São Paulo. “É um marco na história da OAB de Pernambuco. Um momento singular onde nós promovemos uma efetiva igualdade também em relação à pessoa trans”, diz Ronnie Duarte, presidente da OAB-PE. Para ele, o gesto deve servir de exemplo para que outras entidades e organizações adotem a mesma postura. Ela também será escolhida como oradora da turma de aprovados no exame da Ordem.
“Isso abre o mercado de trabalho. Porque ninguém dá emprego. As pessoas acham que transexuais são menores, inferiores, que sujam a imagem da empresa. A OAB reconhecer que um advogado ou advogada pode ser trans, dá força a essa causa. Para que essas pessoas saiam da prostituição e da marginalidade. Durante muito tempo, o ‘trabalho’ dessas pessoas era a prostituição. Ainda hoje é muito difícil”, admite Maria Goretti Soares Mendes, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.
Para Robeyoncé, o sonho estará completo quando ela receber do TJPE a autorização para poder trocar todos os documentos pelo nome feminino. A ação tramita há um ano. “Ser mulher é algo que foge das minhas palavras. Me reconhecendo como mulher, eu me sinto bem comigo mesma. Eu me descobri. Eu olho o espelho e eu entendo finalmente o que é que eu estou olhando”, conta, sorrindo.