Gargalos da saúde básica brasileira

Dificuldades em fixar médicos nas áreas mais vulneráveis são um dos principais gargalos da saúde pública brasileira
Mirella Araújo
Anna Tenório
Publicado em 05/08/2019 às 14:57
Dificuldades em fixar médicos nas áreas mais vulneráveis são um dos principais gargalos da saúde pública brasileira Foto: Foto: Filipe Jordão/JC Imagem


Principal porta de entrada no cuidado e na prevenção de doenças, a atenção básica tem sido um dos maiores gargalos da saúde pública do Brasil. Um cenário que tem levantado entre outras questões a rediscussão do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e formas de atrair e fixar profissionais que fortaleçam a rede de atendimento primário. O programa federal Mais Médicos, implantado em 2013, havia intenção de universalidade do atendimento básico, mas ficou fragilizado após a saída dos médicos cubanos, no fim do ano passado, após o rompimento do contrato entre os governos do Brasil e de Cuba. Na última quinta-feira (1º), o governo Jair Bolsonaro (PSL) repaginou o projeto e lançou o Médicos pelo Brasil. A ideia central é a mesma: ampliar a oferta de serviços médicos em locais de difícil provimento ou de alta vulnerabilidade.

A saúde básica brasileira é um desafio diário das gestões municipais. Com a saída dos médicos cubanos, por exemplo, Pernambuco perdeu 414 profissionais que atuavam em 123 municípios. Pelo menos R$ 1,6 milhão de pernambucanos ficaram sem atendimento médico básico, de acordo com levantamento da Associação Municipalista de Pernambuco (Amupe), feito no fim do ano passado quando a parceria entre Brasil e Cuba foi cancelada. A evasão soma-se à outra problemática diária. Não é difícil encontrar unidades de saúde com serviços muito aquém do que a população espera. Faltam remédios, materiais de primeiros socorros, enfermeiros e, agora, até mesmo médicos. Quanto mais distante da capital, mais precário tende a ser o atendimento.
Segundo o Ministério da Saúde, a nova estratégia federal ampliará em cerca de 7 mil vagas a oferta de médicos em municípios onde há os maiores vazios assistenciais, sendo que as regiões Norte e Nordeste juntas têm 55% do total dessas vagas. Ao todo, serão 18 mil vagas previstas, sendo cerca de 13 mil em municípios de difícil provimento. A prioridade será para profissionais brasileiros. Os cubanos estão fora do programa.

Na avaliação do Secretário de Saúde de Paudalho e presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde de Pernambuco (Cosems-PE), Orlando José Pereira, a nova proposta do governo federal poderá fortalecer o acesso ao atendimento primário. “Tem uma ampliação de mais 7 mil vagas na atenção primária. Com essas vagas, vão totalizar, no final desse primeiro momento, 18 mil postos de trabalhos para a categoria médica. Nós sabemos que a atenção primária não funciona apenas com o profissional médico, mas é estratégico em cidades remotas, onde os médicos não querem viver e fixar família”, explica.
No dia do lançamento do Médicos Pelo Brasil, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reforçou que a ampliação do acesso aos serviços nas Unidades de Saúde da Família (USF) é prioridade do governo federal. “Assim, vamos promover a qualidade de vida da população e intervir nos fatores que colocam a saúde em risco, como falta de atividade física, má alimentação, uso de tabaco, dentre outros. Também vai trazer para perto da comunidade serviços como consultas médicas, exames, vacinas, radiografias e pré-natal para gestantes”, garante Mandetta.

Embora otimista com a nova proposta, o prefeito de Afogados da Ingazeira e presidente da Amupe, José Patriota (PSB), lembra que a maior dificuldade da gestão de saúde nos municípios está justamente nos programas federais. Isso porque, segundo ele, em sua maioria, eles estão “defasados, subfinanciados e há atraso nos repasses”. De acordo com o gestor, um esforço maior da União poderia impactar em menos problemas para os munícipes. “Eles atrasam para habilitar um programa federal, por exemplo. [...]Ou no caso de um subfinanciamento numa UPA 24h (Unidade de Pronto-Atendimento 24 horas). E, por isso, o município acaba tendo que arcar com as contas”, explica.

Na percepção do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), contudo, a precarização do atendimento também recai sobre os gestores municipais, e não só na União. “Muitas vezes o dinheiro disponibilizado pela União não é bem gerido. Ano passado, o governo federal disponibilizou R$ 130 bilhões para todos os municípios brasileiros, mas desse valor só foram utilizados R$ 108 bilhões. Isso o SUS precisando de investimento. É lamentável e preocupante porque os gestores não estão preparados para utilizar bem os recursos”, critica o presidente do Cremepe, Mário Fernando Lins.
Lins afirma que é comum encontrar nas unidades de saúde problemas de infraestrutura, condições de higiene precárias e falta de equipamentos básicos e para suporte em casos de intercorrências. Outro problema, ainda segundo o presidente do Cremepe, são as cidades que possuem um pouco mais de recursos e que acabam recebendo a demanda de outros municípios. “Quem precisa muitas vezes não consegue adentrar na unidade, que está com superlotamento e há pacientes que não eram para estar ali. Então, estamos identificando essas irregularidades”, afirma.

A FALTA DE PROFISSIONAIS

No município de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR), a dificuldade de fixar profissionais ainda é pertinente. A Secretaria de Saúde realizou ano passado uma seleção simplificada convocando 50 médicos, mas muitos não se apresentaram e uma nova seleção está em processo. “Nós estamos trabalhando para o fortalecimento da nossa rede, mas muito dos que entram para serem médicos de saúde da família saem, dois anos depois, em busca de especialização”, explica o secretário municipal de Saúde, Rodrigo Canto.

“Sabemos que toda Estratégia de Saúde da Família perdeu um pouco o romantismo, por conta do mercado. O médico sai voltado com a cabeça para ganhar dinheiro e se especializar. Ninguém quer passar um ano ou dois trabalhando para o SUS (Sistema Único de Saúde) por um processo de vocação ou retribuição por causa do investimento (do governo) das universidade federais e estaduais”, diz o presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Pernambuco (Cosems/PE), Orlando Jorge Pereira.
Em Jaboatão, Rodrigo Canto aponta que as áreas que mais sofrem são as de Jaboatão Centro e Curado, mas todas as 16 vagas do último edital dos Mais Médicos, em maio, foram ocupadas entre junho e julho.
De acordo com a promotora de Justiça Manuela de Oliveira Gonçalves, Jaboatão tem um déficit de 40% em sua cobertura de assistência básica. Os problemas envolvem também as precárias estruturas físicas. “A questão urbanística interfere muito porque dificulta o poder público de alugar imóveis adequados para instalar as unidades de saúde”, afirma.
A reportagem do esteve na Unidade de Saúde da Família (USF) Vaqueja, em Cajueiro Seco. A unidade, inaugurada em abril, estava sendo aguardada pelos moradores há dois anos. “O atendimento é muito bom, não demora. Melhorou muito o nosso acesso”, elogiou Josias Tranquilino, de 59 anos.

Mas a um quilômetro dali, a USF Vera Lúcia Tiêta tem outro cenário. Segundo a doméstica Maria Ramos, 70 anos, existe dificuldades no acesso em períodos de chuva e, às vezes, há falta de medicamentos. Outro morador do local, que não quis se identificar, relatou que há falta de enfermeiros, vigias e os agentes de saúde são insuficientes para atender a área.
Sobre a questão de medicamentos, o secretário Rodrigo Canto esclarece que há problemas pontuais, e, quando detectados, os pedidos são feitos de imediato. “A secretaria informa que o quadro de servidores da Unidade de Saúde da Família (USF) Vera Lúcia encontra-se completo, incluindo profissionais de enfermagem”. Quanto à segurança na USF, garantiu Canto, “guardas municipais realizam rondas diariamente no local”.

Em Itapissuma, também na RMR, os pacientes reclamam da demora para marcação do atendimento médico. Na Unidade Básica de Saúde Lot. Cidade Criança, Flávia Santana, 28 anos, levou a sobrinha Any, 7, para uma consulta com o clínico. Mas apesar de ter um exame médico nas mãos, alegou que precisou procurar a rede particular para fazer a avaliação. “Se eu fosse esperar o exame da rede, essas manchinhas na pela dela ia (sic) piorar”, disse à reportagem, enquanto aguardava atendimento.
Outra paciente da unidade, a comerciante Miriam, 37, até conseguiu marcar a consulta com o clínico, mas advertiu que a falta de médicos é constante. “Aqui é muito difícil marcar consultas. Acho que piorou quando dividiu por área. Pior coisa não se ter um médico”, lamenta. De acordo com a Secretária de Saúde do Município, Benedita Pereira, Itapissuma tem 100% de área coberta. A auxiliar atribuiu a ausência de médicos a questão dos baixos salários, mas alegou que isso estava em fase de reestruturação. O salário mensal pago aos profissionais é de R$ 6,8 mil, mas a Câmara de Vereadores aprovou um aumento e a remuneração passará a ser de R$ 8,5 mil.

Assim como Itapissuma, os pacientes de Igarassu, outro município da RMR, reclamam da dificuldade de agendamento de consultas em alguns postos de saúde, como na Unidade Boa Esperança. “Esse posto daqui é pra muita gente. Eu tô (sic) há dois meses tentando marcar psicóloga para minha menina e não consigo. Eu sei que tem lugar que é melhor, mas como tem esse negócio de ser perto de casa, tenho que ficar nesse mesmo”, alega a dona de casa que não quis ser identificada.
Secretária de Saúde de Igarassu, Patrícia Amélia diz que a região precisa de outro posto para suprir a demanda. Porém, “até junho nós não tínhamos previsão de novos postos, mesmo com o Ministério da Saúde abrindo um sistema para os municípios instalarem postos novos”.

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