Vida normal apesar da esclerose múltipla

Ser acompanhado por equipe multidisciplinar de especialistas é fundamental para retardar efeitos da doença e garantir independência ao paciente
Cinthya Leite
Publicado em 28/02/2012 às 17:39
Ser acompanhado por equipe multidisciplinar de especialistas é fundamental para retardar efeitos da doença e garantir independência ao paciente Foto: Igo Bione/JC Imagem


Para ler esta matéria, livre-se de todo o preconceito que lamentavelmente ainda está por trás da esclerose múltipla (EM) – doença neurológica que atinge cerca de 2,5 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nos dicionários, o sentido figurado do verbo esclerosar (tornar estagnado; paralisar; parar de evoluir) até contribui para que a população tenha uma ideia preconcebida dessa enfermidade.


Na vida real, felizmente a maioria dos pacientes que vive com EM e segue tratamento adequado consegue levar uma vida normal. “Cerca de 70% dos pacientes têm a forma de surto-remissão da doença, que é menos grave porque, após uma exacerbação do quadro clínico, com sintomas bastante intensos, ciente consegue um bom grau de recuperação”, diz a neurologista Maria Lúcia Brito, considerada Ph.D. no assunto.


Foi ela quem abriu caminhos para a fundação, em 1996, do Centro de Referência para Atenção ao Paciente Portador de Doença Desmielinizante do Hospital da Restauração (CRAPPDD/HR). Por lá, passam pacientes das redes pública e privada de saúde. Eles recebem medicações de altíssimo custo oferecidas pelo Ministério da Saúde (MS). A unidade foi a primeira do gênero no Brasil. No ano seguinte, São Paulo criou o seu núcleo e, desde então, vários outros foram formados.


Nesse contexto, vale abrir um parêntese para entendermos o que são as doenças desmielinizantes, das quais faz parte a EM: as fibras nervosas que entram e saem do cérebro estão envolvidas por uma membrana que isola camadas chamadas de bainha de mielina. Quando ela é lesionada, os nervos não conduzem os impulsos de forma adequada. É assim que se desenvolve a desmielinização – que se apresenta sob a forma de perturbações que afetam o sistema nervoso central (SNC).


“A esclerose múltipla é a mais comum entre elas. Dos 800 pacientes cadastrados no CRAPPDD/HR, mais de 500 têm a doença”, afirma a neurologista, que se debruça nas questões por trás da enfermidade desde 1991, quando foi à Inglaterra para estudar distúrbio do movimento. “Lá, vi muita gente com esclerose múltipla. Na época, dizia-se que não havia casos no Brasil. Mas na minha volta, lidei com muitas pessoas com a doença no Recife. Para confirmar o diagnóstico, meus pacientes iam a São Paulo para se submeter à ressonância magnética”, conta Maria Lúcia.
E ela acrescenta: “O problema é que, há aproximadamente 20 anos, não existia tratamento específico para a enfermidade. Atualmente, contudo, há um protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos pacientes”.


Graças a esse avanço, as pessoas com EM convivem com limitações que não atrapalham a rotina. É o caso da assistente social aposentada Maria da Conceição Chaves, 65 anos, mais conhecida como Ciçone, cujo primeiro sintoma da EM apareceu aos 13, quando ela ficou sem enxergar bem por cerca de 10 dias. No ano seguinte, ela teve uma dormência intensa nas mãos, que também passou.


“Aos 18, numa quadrilha de São João, minhas pernas ficaram pesadas, não consegui andar e precisei ser carregada pelo meu cunhado”, relata Ciçone, ao se referir ao primeiro surto da doença. “Até onde sei, fui o segundo caso de esclerose múltipla diagnosticado em Pernambuco. Na época, só me diziam que era uma grave lesão do SNC rara em clima tropical.”


Por carência de instruções sobre EM, ela se sentiu estimulada a criar a Associação Pernambucana de Esclerose Múltipla (Apem), fundada em 1995. Ainda hoje, continua presidente da entidade. “Estou ótima, apesar de ter passado para a cadeira de rodas em 1974. Sou ativa, trabalhei como assistente social por vários anos, fui professora em faculdade e aproveito a vida”, afirma a presidente da associação, que encoraja outros sócios a se reunir no terceiro sábado de cada mês, na sede que fica no Engenho Meio.


Com tantos anos de diagnóstico e ativa, ela ainda deixa claro que cada caso de EM é diferente do outro. “Apesar dos vários sintomas, podemos conviver com as limitações. Para isso, precisamos de uma equipe interdisciplinar”, conta Ciçone. Fazem parte desse grupo neurologistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas e terapeutas ocupacionais.


PECULIARIDADES


Embora não se conheça com exatidão os mecanismos por trás da EM, sabe-se que a doença é mais comum em mulheres do que em homens. “Para cada três mulheres com a enfermidade, há um homem”, avisa o neurologista Fernando Figueira, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia. “Também é notório que, quanto mais precoce o início do tratamento, melhor para o paciente.”


O entrave é que muitos portadores passam por vários médicos até chegar ao neurologista, capaz de fazer um diagnóstico mais preciso. Essa peregrinação pelos consultórios já foi pior: “Há 15 anos, a pessoa com esclerose múltipla passava em torno de seis anos para descobrir a doença. Hoje, em menos de um ano após os primeiros sinais, um especialista já detecta a doença”, frisa Maria Lúcia Brito.


A anestesiologista Luziana Sotero, 59, enquadra-se no depoimento da neurologista. Quando teve o primeiro surto, levou só dois meses para chegar ao neurologista. “Certo dia, há uns seis anos, quando terminei a aula de pilates, tentei andar e caí. Havia perdido a força na perna direita”, diz. A partir desse dia, flashes vieram à mente dela: “Lembrei que tive episódios de dormência forte na mão e na perna, que não foram levados em consideração na época”.


Na primeira consulta, o neurologista de Luziana desconfiou de um tumor cerebral. Imediatamente, submeteu-a a uma ressonância magnética, que indicou áreas do cérebro comprometidas. “Em seguida, passei por inúmeros exames para fechar o diagnóstico. Confirmada a doença, comecei o tratamento, que inclui medicação, fisioterapia, terapia ocupacional e psicoterapia”, conta Luziana.


Para ela, sessões de fisioterapia são valiosas porque conseguem deter a fadiga severa. É um sintoma que precisa ser combatido, já que interfere na habilidade de a pessoa manter a vida ativa. “Gosto dos tratamentos não farmacológicos, que ajudam a levar adiante a minha rotina. Não deixei de trabalhar. Só troquei o lado prático da anestesia pela parte administrativa”, diz Luziana, que tem vida social, sai com amigos e parentes, além de dirigir muito bem o seu carro adaptado.


Feliz da vida, ela conta que não tem episódios de agravamento de doença há oito meses, desde que deu início a um tratamento com um anticorpo monoclonal – proteína produzida para reduzir a atividade inflamatória presente na EM. A medicação que ela usa atualmente é aplicada uma vez a cada quatro semanas, por via endovenosa. Existe ainda outro leque de medicamentos. Todos devem ser indicados com bastante critério.


No segundo semestre de 2011, passou a ser comercializado no Brasil um fármaco oral, que promete deter a progressão para invalidez e incapacidade. Há, contudo, dois poréns: a nova medicação não está no protocolo do Ministério da Saúde, como as outras opções para tratar EM – todas de altíssimo custo. Outro entrave é que a Agência Europeia de Medicamentos revê os benefícios e riscos do produto.


Esse processo foi iniciado após a notificação da morte de um paciente nos Estados Unidos, em novembro do ano passado, que ocorreu após 24 horas a ingestão do fármaco. Até o momento, no entanto, não há relação causal estabelecida entre o óbito e a administração do medicamento.


“Quando se fala da terapêutica para a esclerose múltipla, é bom frisar que não existe um padrão-ouro. Cada paciente deve receber a medicação mais indicada para o quadro que apresenta”, conclui Maria Lúcia Brito.

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