Os bastidores que deram origem a uma petição que circula na internet desde o dia 14 de fevereiro, em favor da desativação imediata do zoológico do Parque 13 de Maio, tem origem na máxima de que o fazer gera o fazer – uma sequência de eventos que, nos dias de hoje, é reforçada e amplificada pelos tais seis graus de separação das mídias sociais.
Quando, como de hábito, ia caminhar no local, o jornalista Edgard Homem passava cinco vezes em frente à gaiola-jaula, de menos de dois metros quadrados, que mantém aprisionada uma siriema (ou seriema), ave da família dos cariamídeos. O olhar de repetição – que para muitos é meio caminho andado para a naturalização, ou seja, as coisas são como são – para ele funcionou como reforço ao estranhamento. Sensação que logo virou um leve incômodo e não tardou a se transformar em inquietação, daquelas que faz a gente falar e falar, prenúncio do agir.
De lá, a próxima parada: almoço no restaurante Nossa Casa, comandado por Hilda Gil na Rua Oliveira Lima, colado ao muro do Colégio Nóbrega, na Boa Vista. A atmosfera é simples e os clientes são assíduos – quando aparece uma cara nova por lá é porque, geralmente, foi apresentada por alguém “da família”. Não demora nada até que o novato seja seduzido pela culinária integral praticada. As receitas que recorrem a folhas e grãos, tendo o peixe e o ovo caipira como únicas exceções à proteína animal, e a “mão” de Hilda como regente de sabores que surpreendem até os mais rigorosos carnívoros, funcionam como ancoradouro.
Não se trata de um bastião exclusivamente destinado aos adeptos da comida organicamente correta, embora eles preponderem. O cineasta Felipe Peres Calheiros, por exemplo, diz que encara tudo, sem radicalismos, mas procura o lugar como forma de disciplina para “se alimentar melhor”, e com prazer, faz questão de ressaltar. Além das mesas para quatro pessoas, existe aquela comunal, retangular, bem comprida, na qual as amizades nascem, florescem e “os parentes” fortalecem seus laços durante a refeição.
Ocupam assento Edmar, um senhor magrinho a quem chamam de professor, mas que nem todos sabem responder exatamente “do quê”; o cineasta já mencionado, Paula, moça de cabelos cacheados, funcionária pública e professora; o jornalista da siriema e tantos outros personagens que aproveitam o momento para falar sobre suas vidas e o palco principal onde ela se desenrola: a cidade. E de tanto trazer o assunto “siriema do 13 de Maio” à baila, o jornalista capturou o ouvido do cineasta. Felipe Calheiros é, ao lado do colega de profissão Marcelo Pedroso, responsável pela criação do site Vurto (http://www.vurto.com.br/)
No Vurto são postados, por eles ou por quem quiser colaborar, vídeos com a proposta de misturar arte e política em tópicos como ocupação urbana, mobilidade, relação patrão x empregado e tudo o mais que faz convergir o olhar e a vontade de pontuar. Logo abaixo da logomarca está o significado dicionarizado do verbete: “(s.m.) do popular vurtar-se, ato ou efeito sobrenatural de aparecer e desaparecer rapidamente”. Assim como a corruptela do fantasmagórico vulto, os filminhos pretendem se esgueirar surgindo quando menos se espera nas mídias sociais, reproduzindo-se através de compartilhamentos, arrecadando seguidores e curtidores com a mesma rapidez e simplicidade que envolvem sua realização: basicamente uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. “Buscamos uma forma de nos livrar dos processos complicados de captação de verbas que sempre envolvem grandes produções. Assim, é só querer, chegar e fazer”, explica Calheiros.
E foi, diretamente do almoço, pronto para filmar, que Felipe Calheiros seguiu para o cativeiro da tão falada siriema. Lá estavam ela e o som ao redor. Segundo Felipe, uma babel de ruídos de construção, música de estourar os tímpanos, provocação dos humanos para vê-la emitir seu grito rasgado e trios elétricos em dia de festa. Tanta balbúrdia o fez pensar no que disse o amigo jornalista: “Se eu soubesse que um dia iria reencarnar como siriema em condições similares, não pecaria jamais”.
Não que os animais estejam maltratados, no sentido estrito do termo. A moradia, embora restrinja sobremaneira os movimentos, é limpa, em lugar sombreado, pode-se ver a ração em recipientes adequados e água fresca. Uma prisão-vitrine bem-organizada, na qual a vida é uma repetição de pessoas que param e olham.
A musa de penas e canelas finas mereceu esforço. Por conta do vídeo, Felipe Calheiros pesquisou e descobriu que uma siriema pode alcançar até 50 km/h – correr, e não voar, é sua escolha de locomoção: “Apenas durante o tempo de duração do vídeo, a siriema em questão, se não fosse prisioneira há muito, muito tempo, poderia ter percorrido 2 km”, enfatiza o realizador. Na verdade, não existe apenas uma siriema no 13 de Maio, mas duas, em gaiolas separadas. A uma delas foi destinado, guardadas as proporções, um duplex, à outra, um quitinete.
Quando partiu, deixando para trás a estrela em seu minúsculo camarim de grades, Felipe levava não apenas o conteúdo do filme postado no Vurto, mas a ideia de amplificar o grito excluído da siriema, transformando-o numa campanha, com abaixo-assinado, para desativação imediata do minizoológico do Parque 13 de Maio como um todo, uma vez que as aves têm como vizinhos de cela macacos-pregos, araras, jandaias e pavão, todos expostos à mesma vida estressada, em espaço diminuto, pipocas e bater de palmas distribuídas pelos visitantes e passantes com igual prodigalidade.
Do vídeo surgiu a ideia de criar uma página no Facebook, a comunidade do Bloco da Siriema, que defende o banimento do minizoo urbano, hospedando o vídeo e o abaixo-assinado. A intenção, dizem os organizadores, era fazê-lo desfilar no Carnaval de 2014, mas, como não foi possível, a saída ficou adiada para o ano que vem. Se a siriema resistir até lá ou não for, finalmente, transferida para ambiente mais propício ou, como eles mesmos subscrevem, menos indigno. Com música, e promessa, encerra-se o filme da siriema: “Eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra morar comigo, e não interessa o que os outros vão pensar”, insinua o refrão imortalizado pelo canto de Odair José.