A reportagem que você começa a ler nesse instante não é uma denúncia. Nem uma cobrança. É uma proposta para você sair de casa – depois de ler o jornal, claro – e olhar a seu redor, de preferência para o alto. Isso mesmo. Experimente andar pelas ruas do Recife, sem pressa, apenas contemplando os detalhes da arquitetura das velhas edificações e veja o que descobre.
Num passeio assim, despretensioso, encontramos a figura de Mercúrio, o deus do comércio, enfeitando casarões que no passado eram moradia. E a carinha de um jovem na fachada do Edifício Chantecler voltada para a Rua da Madre de Deus, no Bairro do Recife, em meio à profusão de laçarotes e flores da decoração do famoso prédio.
Quarta-feira passada (27), as comerciárias Cleide Albuquerque e Polliana Brito toparam o desafio de olhar o casario da Rua Duque de Caxias, por onde passam todos os dias a caminho do trabalho, no bairro de Santo Antônio, Centro da cidade. “Oxe, e não é que tem um índio mesmo ali?!”, espantou-se Polliana ao ver, pela primeira vez, a escultura de um índio, de corpo inteiro, na fachada de um dos prédios.
“Nunca tinha notado”, continua Cleide Albuquerque, igualmente surpresa ao se deparar com um painel de azulejo colorido, em outro imóvel da Duque de Caxias, na esquina com a Avenida Nossa Senhora do Carmo. O quadro retrata uma moinho de vento, com o silo, a vela usada para girar a pedra, um burro de carga, uma cerca e árvores.
Reparando bem as edificações, você vai perceber rostos femininos em prédios comerciais, leões e até nomes engastados em paredes, como a Vila Almeida, na Rua Real da Torre, bairro da Madalena. Esse tipo de decoração era frequente no Recife até a década de 40 do século 20, informa o arquiteto José Luiz Mota Menezes, presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
Os enfeites, diz ele, tinham duas funções. Num primeiro momento, serviam como indicador da profissão do dono da casa (ferreiro, alfaiate) ou para mostrar a importância que o morador se dava na sociedade, num costume medieval. “Era uma espécie de placa de propaganda, numa época anterior à publicidade”, compara o arquiteto. Depois, os acessórios ganham natureza decorativa do renascimento.
Comerciante português no século 19, próspero e influente, o barão Rodrigues Mendes tinha um Mercúrio na fachada da casa onde morava, na Avenida Rui Barbosa, bairro das Graças. Atual sede da Academia Pernambucana e Letras, o imóvel não exibe mais a escultura, roubada anos atrás. Mas serve como pista para explicar a figura do deus do comércio decorando a fachada de um antigo casarão residencial da Avenida 17 de Agosto, em Casa Forte, hoje transformado em loja. Ali, muito provavelmente, vivia um comerciante rico.
“O nome do morador na fachada da casa, às vezes associado ao brasão da família, como ainda se vê na cidade, simboliza a marca da elite”, diz o arquiteto. Possivelmente, o exemplo mais antigo de ornato com função indicativa, no Recife, esteja no Instituto Arqueológico. É a pedra de Jacob, que ficava na porta de uma das casas da Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, no século 17, com a inscrição “Jacob sou eu”, conta José Luiz.
Na Rua Duque de Caxias, a função do índio, que remete ao homem nativo, é sinalizar a numeração dos prédios. A figura, de cocar e saia de penas, segura numa das mãos a placa com os números 340 e 350. Segundo o arquiteto, os enfeites decorativos são típicos da arquitetura eclética europeia, copiada pelo restante do mundo. “As imagens chegavam ao Recife por meio de gravuras e litografia”, declara.
Outra curiosidade, não da arquitetura, mas ligada à fundição, é a maçaneta em formato de mãozinha nos portões de um palacete de gosto francês na Avenida Rui Barbosa, em frente ao Colégio Damas, nas Graças. “Muitos desses portões de ferro foram desmanchados e os ornatos substituídos por quatro pedrinhas de azulejo”, lamenta José Luiz. Mas, ainda há muito o que se ver. Descubra.