As explicações que surgiram para a rejeição à nova constituição do Chile chamam a atenção no Brasil polarizado.
As "análises" vão de “derrota da esquerda” ou “é porque o povo é conservador” até “os chilenos não estão preparados para o futuro”.
É risível.
Se há um povo na América do Sul preparado para o futuro, é o chileno. Enquanto todos os países sul americanos buscavam encontrar um caminho e pulavam de fórmula em fórmula, “ideia genial e salvadora” após “ideia genial e salvadora”, o Chile possuía uma economia estável, com índices educacionais incompreensíveis para a região, de tão bons.
O problema é que os governos chilenos deixaram de fazer o básico: reformas. A situação era tão boa que o Chile ficou acomodado.
A economia se descontrolou e a pandemia colocou a cereja no bolo amargo.
A vitória de Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, de esquerda, deu a impressão aos mais empolgados de que a população, que nas últimas décadas sempre elegeu candidatos de centro-direita ou centro-esquerda, mas sempre liberais, havia mudado completamente o jeito de pensar.
Agora, "todo mundo é de esquerda" no Chile. Porque ainda temos esse impulso primitivo de transformar questões complexas para que elas caibam em nossa caixa de pensar, no formato que nos é mais agradável. Reduzir para entender.
A verdade é que, pela falta de reformas, os chilenos viram a economia se deteriorar. No momento em que a situação pesa em seu bolso, seja qual for a origem do problema, a população tende a apelar para qualquer mudança significativa, desde que a promessa de alterar a realidade presente seja expressa.
A nova constituição chilena, agora rejeitada, foi feita com aquele sentimento de “mudem tudo, porque do jeito que está não dá”.
É verdade que a carta anterior era baseada na ditadura e no pensamento de Pinochet. É verdade que precisava ser modificada. Mas o povo não queria mudá-la por aversão ao ditador e sim porque a economia estava ruim e as bases da sociedade estavam rompidas.
A constituição foi modificada pelos constituintes como se o problema fosse Pinochet, um morto.
Boric foi eleito, e a economia continuou ruim. A taxa de juros é a mais alta dos últimos 24 anos, a inflação ultrapassou 13% em agosto, o desemprego está em torno de 7%, considerado alto para a história do país.
Se a Constituição é baseada no que Boric prometeu na campanha e se ele não conseguiu resolver nada até agora, por que a Carta Magna estaria no caminho certo?
O texto foi rejeitado, não porque a população é fascista, mas porque Pinochet, morto, não vai estabilizar ou desestabilizar a economia, independente de ter influenciado a constituição anterior ou não.
O texto foi rejeitado, não porque o povo se arrependeu de ter votado na esquerda, mas porque o presidente (que, por acaso é de esquerda) não conseguiu resolver as questões que prometeu resolver.
O povo pediu uma Constituição que melhorasse suas vidas. Os constituintes escreveram o que eles achavam que melhorava a vida deles próprios. Porque "o problema era Pinochet".
Tem uma lição muito importante para o Brasil nesse desencanto chileno. O impulso de apostar naquilo que parece salvador, quase sempre nos leva a esse mesmo desentendimento reducionista.
Desentendimentos reducionistas acontecem quando, diante de um problema, duas pessoas reduzem a solução a duas ideias completamente diferentes e seguem discutindo como se estivessem ainda falando sobre a mesma coisa.
Diante de uma parede a ser pintada, um quer usar tinta amarela e o outro começa a falar sobre reformar o sofá. Eles não estão falando sobre a mesma coisa. Mas, seguem discutindo.
O eleitor acredita que está escolhendo alguém que vai resolver seus problemas e o eleito acredita que está sendo escolhido porque é a melhor opção.
Após a eleição, o povo espera melhorias e o presidente espera ser seguido e apoiado.
O Chile ensina que estamos, aqui no Brasil, caminhando para uma decepção mútua entre eleitores e eleito, seja Bolsonaro ou Lula o próximo presidente.