Foi preciso uma semana inteira de sofrimento por parte de milhares de pessoas em todo Estado para que, após um breve imbróglio jurídico entre os governos estadual e federal, fosse decidido o óbvio: o atendimento ao público que tem direito ao auxílio emergencial do governo federal, nas agências da Caixa Econômica, precisa ter o mínimo de dignidade e de respeito às normas sanitárias, a fim de garantir a distribuição do benefício e evitar a propagação do coronavírus. E que nenhum dos entes envolvidos – governo federal (através da Caixa), governo do Estado e prefeituras – poderia fazer isso sozinho, mas sim em conjunto.
O que salta aos olhos é por que razão esse entendimento não aconteceu antes e sem necessidade de determinação judicial. O que pensava o governo do Estado e prefeituras enquanto as cenas de aglomeração se repetiam dia após dia? Apenas na última quinta-feira (30/4), após quatro dias de suplício para o povo, é que a gestão entrou com uma ação para obrigar a Caixa, e tão somente a Caixa, a arcar com a responsabilidade da organização das filas e do entorno das agências.
Após derrota na primeira instância, o Estado recorreu ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), na última sexta-feira (1/5). Conseguiu, é verdade, que a Justiça determinasse várias obrigações à Caixa Econômica. Entre elas a de fazer a triagem dos beneficiários e a de ter que abrir agências aos sábados e domingos caso os atendimentos não sejam suficientes ao longo da semana. Mas acabou sendo chamado a um baile no qual, originalmente, não queria dançar: o desembargador Vladimir Souza Carvalho determinou que o governo do Estado deverá apoiar a Caixa na organização das filas – muito provavelmente com o uso da Polícia Militar para disciplinar os acessos e garantir a distância segura entre as pessoas para evitar infecção pelo coronavírus.
A Prefeitura do Recife, por sua vez, também assistiu ao filme por cinco dias e só anunciou uma atitude horas após a decisão do TRF5: a higienização, no sábado (2), das agências da Caixa que abrem ao público.
Por que?
Não se nega os esforços do poder público para impor isolamento social à população e ampliar a capacidade de atendimento da rede de saúde. Mas era óbvio, desde a segunda-feira (27), que havia algo muito errado nas aglomerações em frente às agências da Caixa. Algo que pode ter um trágico rebatimento, na forma de milhares de infectados, em duas semanas. Isso justamente quando nos aproximamos perigosamente do estágio em que os sistemas de saúde – público e privado – chegam à saturação. Em outras palavras, quando haverá doentes e não haverá leitos.
As cenas de pessoas amontoadas, a maioria sem máscaras, depõem contra tudo que o poder público prega para tratar da pandemia. E aqui um parêntese necessário: é um contingente que não tem culpa pela situação. São pessoas que foram privadas do próprio sustento diário. A necessidade bruta de colocar comida à mesa, de pagar uma conta ou de comprar um remédio se impõe inclusive ao sempre simpático – e necessário – #fiqueemcasa. E as pessoas terminam arriscando a própria saúde. Como disse um homem em uma das filas registradas durante a semana: “é morrer de vírus ou morrer de fome”.
À primeira vista, e para quem está em casa com a geladeira abastecida, pode parecer um absurdo que se burle as orientações das autoridades de saúde, saindo às ruas quando o pico de contágio, perigosamente, se aproxima. Mas não é tão simples assim. É impossível criticar o estágio de necessidade do povo, principalmente quem está no conforto do home office e recebendo salário normalmente.
Houve muitos erros ao longo do processo. A informação não chegou ao público como deveria. Em cada cinco pessoas que buscaram presencialmente a Caixa na última segunda-feira (27), apenas uma tinha direito ao saque na referida data. Ou seja, a população não sabia quando deveria receber. Poderia haver quatro vezes menos pessoas nas ruas se todos fossem nas datas corretas, relativas ao mês de aniversário dos beneficiários.
As autoridades, por sua vez, claramente subestimaram o estado de necessidade que leva a população em peso às agências. Quando se quer, organiza-se o acesso de multidões maiores, como em shows e jogos de futebol “padrão-Fifa”. E o que se viu durante a semana foram apenas portões fechados na cara das pessoas.
Em entrevista ao programa Balanço de Notícias, da Rádio Jornal, na última quarta-feira, a pesquisadora Ana Brito, da Fiocruz em Pernambuco, alertou para a falta de humanidade nos fatídicos primeiros dias do recebimento do auxílio no Estado. “O poder público poderia ter um atitude mais humana no atendimento dessas pessoas. Sair para equipamentos mais amplos como Geraldão, Centro de Convenções e conseguir garantir o distanciamento. Assistir a essas cenas (de aglomerações) é como ter um punhal cravado no peito. É preciso humanizar o atendimento”.
Continua um mistério insondável o por que de uma demora tão grande por uma providência por parte dos poderes locais no que diz respeito às filas do auxílio. Demora que pode, mais à frente (e esperamos que não), resultar em mais e mais infectados. Se isso acontecer, só quem não tem culpa é a própria população.