" Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por tigres. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada ou em um outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés".
A descrição é de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), mas não se engane: milhares de pessoas no Brasil de 2020 são submetidas a provações semelhantes às dos escravos do Brasil Colônia. De lá para cá podem ter chegado os arranha-céus, smartphones e carros elétricos – mas a falta de saneamento básico para milhares de pessoas continua como uma chaga a nos lembrar que falhamos como civilização.
Metade dos 209 milhões de brasileiros não têm acesso a esgoto. Lidam com excrementos basicamente da mesma forma como se lidava no Brasil escravagista. A falta de prioridade na gestão das cidades para o saneamento é dos maiores problemas estruturais do Brasil. Obra de uma falta crônica de visão dos entes públicos em todas as esferas, ao longo de mais de cem anos. Uma culpa de todos, menos dos que ao longo dos tempos e que até hoje são obrigados a viver em meio a fezes e urina.
Sim, obras de saneamento são caras. Sim, exigem muito mais pernas que o poder público tem. E sim, não dá para esperar mais cem anos até que o Estado resolva fazer o que não fez mais de um século para trás.
O marco regulatório do saneamento que foi aprovado no Senado na última semana é, na pior das hipóteses, uma tentativa de sair da imobilidade em que se arrastou o setor por décadas. Na melhor, uma oportunidade real de mudança, de fazer com que milhares de pessoas tenham, finalmente, acesso a esgotamento sanitário e água tratada, condição básica para uma vida digna e saudável.
A conta não é complicada: de acordo com o Instituto Trata Brasil (maior organização não-governamental a estudar as questões do saneamento básico), cada R$ 1 investido no setor significa uma economia de R$ 4 na saúde pública, pois menos pessoas adoecerão pela exposição constante a dejetos.
O marco do saneamento, que envolve poder público e iniciativa privada em um regime até benevolente de concessões para ambos, deveria ser objeto da maior união política da história do Brasil. Sem polarização, sem picuinha, de forma madura. Que existam pessoas contra o fato de se tentar algo diferente do que se viu – com resultados pífios – nos últimos cento e tantos anos, eis um mistério insondável.
O último ranking nacional do saneamento divulgado pelo Instituto Trata Brasil mostra como estão posicionadas as 100 maiores cidades brasileiras no quesito. O Grande Recife não vai nada bem: o município com melhor colocação é Paulista, num modesto 58º lugar. Em seguida vêm Olinda (67º) e o Recife (75º). Na última colocação, com um vergonhoso 88º lugar entre 100 municípios, Jaboatão dos Guararapes, onde apenas 19,2% das pessoas têm acesso a esgoto. A título de comparação, a cidade de Santos (SP), melhor colocada no índice, tem 99,9%. O município pernambucano com melhor colocação no ranking é Petrolina, no Sertão: 29º lugar.
Ainda a título de comparação, e para mostrar o longo caminho que o Grande Recife ainda tem a percorrer no segmento, um olhar para os dez municípios com os melhores índices de saneamento no País: cinco estão no Estado de São Paulo (Santos, Franca, São José do Rio Preto, Piracicaba e São José dos Campos), três no Paraná (Maringá, Cascavel e Ponta Grossa), um em Minas Gerais (Uberlândia) e apenas um no Nordeste: Vitória da Conquista, na Bahia. No município baiano a marca é invejável – 100% da população tem acesso a água tratada e 92,2% a esgotamento sanitário.