O Colunista de O Estado de S.Paulo analisa a performance do capitalismo brasileiro
Neste ano está sendo comemorado meio milênio da Reforma Protestante. Foi em 31 de outubro de 1517 que Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, nordeste da atual Alemanha, e colocou em marcha o movimento que se tornou muito maior do que ele imaginaria.
Como o Brasil nasceu e foi criado simultaneamente com o desenvolvimento do protestantismo, cabe perguntar qual terá sido a influência da Reforma no desenvolvimento do País, de suas instituições e da economia.
É um equívoco afirmar que as consequências foram irrelevantes. Mas é preciso focar o tema de maneira correta. Enquanto os Estados Unidos se formaram no espírito da Reforma Protestante, o Brasil – e com ele toda a América Latina – formou-se no espírito da Contra-Reforma. As consequências da Reforma sobre a formação do Brasil têm portanto de ser procuradas pelo avesso.
A Companhia de Jesus, por exemplo, tornou-se a principal ordem religiosa que se encarregou de disseminar as conclusões do Concílio de Trento (1545 a 1563), que fundamentou a reação da Igreja. E foi com esse espírito que os jesuítas trazidos ao Brasil por Martim Afonso de Sousa, em 1531, e chefiados por Manoel da Nóbrega se atiraram à catequização dos indígenas. Desde o início, conseguiram eles algum sucesso na substituição das músicas e danças praticadas pelos índios por cantorias e procissões trazidas da Europa ou reinventadas aqui por Anchieta e Aspicuelta.
Mas praticamente não obtiveram nenhum sucesso nas tentativas de erradicar duas práticas dos indígenas que os horrorizaram: a antropofagia e a naturalidade com que praticavam o sexo gay, o pecado nefando.
E foi essa última característica que levou os portugueses a chamar os índios brasileiros de bugres. O termo provém da designação dada à heresia que prosperou no século 13, na região depois conhecida como Bulgária. Além de professar dogmas inaceitáveis pela teologia católica, a seita, conhecida como heresia búlgara, defendia a prática homossexual – já eram moderninhos. E foi assim que os portugueses passaram a chamar os índios de “búlgaros”, termo que, por corruptela, derivou para “bugres”, que encontra paralelo também no francês “bougres”. Tachá-los de hereges serviu de justificativa para preá-los e escravizá-los. (Sobre o assunto bugre, ler Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, cap 2.)
A Contra-Reforma produziu alguma reforma na Igreja, como observa Jacques Barzun, mas contribuiu para enrijecer seus controles. Foi a responsável, também, pela disseminação da Inquisição no Brasil nos séculos 16 e 17 que prevaleceu sobretudo na Bahia e em Pernambuco, mais com objetivo de reprimir “cristãos novos” (judeus) do que para combater os protestantes, raros no Brasil.
A Reforma eliminou a suntuosidade das igrejas e do culto e aboliu as imagens dos santos. A Igreja respondeu com o oposto e ajudou a propagar o barroco. O barroco mineiro, nas suas três principais manifestações (arquitetura, escultura e música), foi um dos mais importantes movimentos culturais propiciados pela Contra-Reforma.
Aleijadinho e a exuberante composição de música sacra em Minas são consequência disso. E aí, paradoxalmente, um dos compositores europeus que mais influenciaram a música brasileira, tanto a barroca quanto certos gêneros posteriores, foi Johann Sebastian Bach, um luterano. Não foram apenas as bachianas de Villa-Lobos que saíram daí, mas também o chorinho.
O capitalismo tardio do Brasil também deve ser visto pelo seu avesso, na medida em que nada tem com protestantismo. Deve-se ao sociólogo alemão Max Weber o entendimento de que o espírito capitalista no Ocidente está ligado à ética do trabalho e da criação de riquezas, professada pelos protestantes, especialmente pelos calvinistas.
A pouca influência protestante no Brasil impediu durante muito tempo o florescimento do empreendedorismo. Chegou por aqui cerca de cem anos depois que os empresários ingleses e americanos produziram nas terras deles a Revolução Industrial.
O primeiro grande empresário brasileiro foi Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá (1813-1889). Só depois, com os imigrantes e seus descendentes, passaram a proliferar os Matarazzo, os Martinelli, os Calfat, os Feffer. Foi quando os sinais de riqueza passaram a ser associados mais à capacidade transformadora do que à exploração do próximo.
Assim, se a gênese do capitalismo brasileiro nada tem a ver com a ética protestante propriamente dita, seu retardamento, no entanto, parece diretamente ligado à influência hegemônica exercida pela Contra-Reforma.
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