O projeto de Lei Ordinária 14434/2022, que institui piso salarial da enfermagem, é um desses casos clássicos em que uma lei é aprovada e fica anos esquecida nas gavetas do Congresso Nacional, até que num movimento súbito é aprovada sem qualquer análise mais apurada de suas consequências para o contribuinte e a repercussão na sociedade.
A Lei no 7.498, de 25 de junho de 1986, que institui piso salarial para enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e parteiras, foi assinada pelo presidente José Sarney. Ela ficou 35 anos numa gaveta, até que no dia 29 de novembro de 2021, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou o projeto que, no texto de apenas dois artigos, finca os valores dos pisos com base no salário mínimo, sem ter uma só palavra que estime os custos decorrentes de sua aprovação.
Entre a apresentação e a aprovação decorreram apenas 156 dias para que fosse transformada numa Proposta de Emenda Constitucional (nº 124/2022). Ou seja: uma lei que ficou na gaveta por 12.941 dias foi aprovada em pouco mais de três meses.
Pela lei, o piso dos enfermeiros servidores dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de suas autarquias e fundações será de R$ 4.750,00 mensais. Por sua vez, técnico de enfermagem deve receber R$ 3.325,00, e auxiliar de enfermagem e parteira, R$ 2.375,00.
A questão é se os enfermeiros têm o direito de receber o piso. Tem e ninguém pode ser contra. O que se discute é os seus patrões têm condições de pagar o novo valor. E quem vai bancar e como pagar essa conta
O mais interessante dessa tramitação relâmpago é que nas 478 palavras em que Contarato faz sua justificativa não consta qualquer referência ao impacto financeiro da aprovação da nova PEC-124, revelando que durante os cinco meses em que tramitou de forma acelerada, ninguém fez uma pergunta simples: quanto isso vai custar?
Somente depois da lei do piso da enfermagem ser promulgada é que começaram a surgir os primeiros números do custo da nova legislação.
O impacto do projeto que cria um novo piso salarial para os profissionais de enfermagem no caso dos enfermeiros empregado pelo Governo Federal é praticamente nulo para a União. Aproximadamente R$ 24,9 milhões ao ano.
O problema fica mais sério quando se faz a conta com os municípios (R$ 4,1 bilhões); para o setor privado (R$ 5,4 bilhões) e para as entidades sem fins lucrativos (R$ 5 bilhões). Nos estados, o aumento da massa salarial decorrente do novo piso seria da ordem de R$ 1,6 bilhão.
Desde o início, a área econômica do governo advertiu para o problema, mas sabendo que será difícil segurá-lo na Câmara, que aprovou em apenas três dias.
A visão dos técnicos é de que, mesmo com impacto pequeno direto na União, ele pesaria fortemente entre os entes federativos e setores com alto poder de apelo no Congresso que podem, mais à frente, acabar jogando a fatura para o governo federal. Mais uma vez ninguém na Câmara prestou atenção.
No total, o impacto em termos de aumento da massa salarial dos profissionais de enfermagem é da ordem de R$ 16,3 bilhões. O número mais aproximado é de um milhão e 147 mil profissionais da enfermagem nos setores públicos e privados.
A consequência foi que a CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde) moveu um ação no STF (Supremo Tribunal Federal) na tentativa de barrar o pagamento do piso da enfermagem, argumentando que não há indicação da fonte de recurso para o pagamento do novo piso salarial.
O que o Congresso não contava é que com a divulgação dos números e o impacto financeiro, a reação da sociedade fosse contra a irresponsabilidade dos deputados e senadores e do Governo quanto aos custos e os risco de que o setor fizesse milhares de demissões.
Isso fez com que, mesmo desafiado pela decisão do ministro Luiz Roberto Barroso, o Congresso não tomasse nenhum atitude. Nesta terça-feira a análise do processo que segue até a próxima sexta (16) tem o placar de 5 x3 pela suspensão, o que deve aumentar caso não sejam feitos pedidos de mais tempo para análise.
O relator, Luís Roberto Barroso, foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Cármen Lúcia para suspender a remuneração mínima.
Parece claro que a decisão rápida do presidente Jair Bolsonaro, que fez questão de ir ao Congresso participar da promulgação da PEC do piso salarial da enfermagem, foi de jogar o problemas para os governadores e prefeitos.
A nível da União, a nova despesa poderá ser absorvida sem problemas. Mas a questão não se resume apenas aos municípios, que já advertem que haverá demissões.
A questão está mais relacionada ao impacto nas instituições privadas, às Santa Casas de Misericórdia que dependem 100% do SUS.
As empresas privadas simplesmente judicializaram a questão através da CN Saúde (Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos de Serviços).
A entidade diz que o piso é "inexequível" porque não consideraria desigualdades regionais, criaria distorção remuneratória em relação aos médicos e aumentaria o desemprego.
O risco é o STF frustrar tanta gente por causa de um enorme aproveitamento eleitoral do Congresso.