Na melhor das hipóteses, o silêncio é lugar de sossego, acolhimento, ideal para a meditação e o apaziguamento do turbilhão de ideias, num mergulho da identidade que se permite alheia, apartada do mundo ao redor como um filósofo num tanque imaginário de privação de sentidos. Um silêncio assim pode induzir à reconciliação do indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o seu destino, ou lá como se chame o elo entre passado, presente e futuro que nos forma.
Mas nas hipóteses menos benignas, manifestam-se silenciosamente sintomas de egos doentes, transbordados de angústia, pensamentos barrados à língua, gestos eloquentes que dão a volta na fala para se expressar, ainda que involuntariamente. Do lado de fora do tanque dos sentidos privados dos meditantes, a realidade em sua cacofonia está repleta de barulhentos silêncios, que nos acompanham desde o nascimento ao último suspiro – ou mais: desde antes, até depois de a vida ser inscrita, definida e resumida por um nome entre duas datas.
Em “Dentro de nosso silêncio”, livro publicado pela editora Bestiário em 2022, e vencedor do Jabuti na categoria Romance de Entretenimento, no final do ano passado, Karine Asth nos oferece algumas versões do que aparece sem aviso, verbo, tom, uma nota musical que o denuncie. Neste sábado, a autora se encontra com a também escritora Zuleide Lima, num bate-papo sobre a obra, o prêmio e, também, a respeito de questões atuais da literatura e da publicação de livros no Brasil. Será na Livraria Leitura do Shopping Recife a partir das 4 da tarde.
Marcada pela experiência longa de tentativas de engravidar, como a protagonista do romance, Karine Asth vai desenrolando silêncios para contar uma história de sonoridade original e tocante. De uma página à outra, de silêncio em silêncio, a obra leva os leitores a conhecer o drama que une a maternidade e a paternidade, mas atravessa sobretudo as mães, na expectativa – o primeiro silêncio – da vida gerando outra vida.
“Uma palavra e tudo poderia ser diferente”, mas nem sempre a palavra é dita ou escutada, mesmo se por dentro uma vontade, tristeza ou euforia grita. Quantas vezes perdemos falas que pareciam essenciais, que se calam, prestes a sair pela boca, num suspense que se eterniza? O tempo passa, com seus ruídos cotidianos escondendo processos e problemas silenciosos. Como a solidão ou o cansaço, o prenúncio de uma despedida, tanto quanto a espera arrastada por alguém, por uma resposta, pela pergunta que demora a vir.
Há lugares que guardam lembranças, onde não é necessário se falar nada: os ambientes revisitados trazem uma enxurrada de reminiscências audíveis, fazendo as ausências tão presentes. Curiosa é a impressão de que não há silêncio desabitado, e no vácuo de som reconhecível, o silêncio do silêncio zune.
Há tabus sobre os quais não se comenta, porque insistem em incomodar, apesar de reclusos ou aprisionados no silêncio. Um nome banido não é automaticamente esquecido, pelo contrário, às vezes a artimanha acende a memória e o que vem junto. Mas também há acordos para que vinguem silêncios preciosos, a serem desbastados no momento certo.
A necessidade do silêncio se impõe quando a inquietude está no volume máximo. Ou a reflexão pede que tudo mais se afaste. Perdidos em pensamentos, podemos encontrar o que nem sabíamos estarmos procurando. Talvez seja ainda indicador de preparação: uma gradação que acumula e burila o que virá depois do silêncio.
O silêncio do outro pode ser irritante. É difícil conviver com um silêncio, ou seus estilhaços, no plural. Mas a intimidade, silenciosa, deixa de compartilhar muita coisa se não se percebe o que está no ar, no olhar, num movimento desprovidos da intenção do som. E assim se prolongam rancores, dissabores, dificuldades de comunicação pela incompreensão dos silêncios – inclusive quando não passam de fuga.
Quando não sabemos sequer o que sentimos, o silêncio é constrangedor, e não raro assimilado pelo corpo feito doença. Lá dentro se guarda uma cura, que deve sair do silêncio e ganhar a mente consciente. Enquanto isso, a culpa pesa silente, avassaladora, sem saber como se pronunciar.
A indecisão, trancafiada, aprisiona o indeciso. O silêncio do não puxa o estresse, angustia. Enquanto o do sim desafoga, alivia. Existem perguntas silenciosas – e respostas espantosamente mudas.
O silêncio dos tímidos. O sorriso dos sábios. A distância dos que não querem dizer mais nada. A proximidade dos que não precisam falar. O respeito discreto. A observação quieta. A surpresa que sequestra toda palavra. A certeza de que nenhuma que venha a ser dita fará diferença.
Na obra reconhecida pelo Jabuti, Karine Asth promove o cruzamento de vários silêncios – como esses, indispensáveis: o silêncio de quem escreve se encontra com o de quem lê. A escrita é um grito inaudível. E a leitura, como escutar uma sinfonia, composta pelo texto que nos coloca em contemplação.