POR ROBERTA SOARES, DA COLUNA MOBILIDADE
O passado foi díficil, o presente tem sido péssimo e a perspectiva do futuro é de muitas - mas muitas mesmo - dificuldades. De tempos difíceis e de uma ainda maior negação pela sociedade. Esse é o cenário previsto para o transporte público coletivo brasileiro - ônibus, metrôs e trens - no pós-pandemia do coronavírus. É claro que, é preciso explicar, a reportagem que segue é muito mais reflexiva do que embasada em fatos consolidados. Até porque eles ainda não existem. Mas o que se desenha em países que estão começando a superar a pandemia - se é que podemos considerar essa possibilidade - valida esta análise. Enquanto a demanda de passageiros tem retornado em percentuais muito baixos aos ônibus e metrôs, a intenção pela utilização e compra de automóveis cresce. Há uma sensação de redescoberta do carro por medo do contágio em equipamentos coletivos. Os dados são preliminares e tudo pode mudar - é preciso destacar -, mas eles assustam e preocupam. Também porque indicam que viveremos, por um tempo ainda indefinido, com pandemias.
Na China, epicentro da crise sanitária mundial, apenas 34% da demanda do transporte público foi retomada na quarta semana após a volta gradativa ao trabalho. Quando o olhar é apenas o metrô, a retomada é ainda menor: 22%. O levantamento é do escritório do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) na China. O ITDP é uma organização mundial que promove o transporte ambientalmente sustentável e equitativo em todo o mundo. Atua guiando e orientando gestões públicas nesse conceito. Ao mesmo tempo, uma pesquisa online realizada pela Ipsos, empresa de pesquisa de mercado independente, mostrou que, no mesmo país asiático, 77% das pessoas interessadas em adquirir carro próprio usaram a redução de possibilidade de contágio como principal argumento. Ou seja, o medo da população chinesa deverá beneficiar o mercado automobilístico local.
O transporte público urbano, que historicamente sofreu preconceito, sendo renegado a último plano por muitas gestões públicas e por muitos e muitos anos, vai pagar o preço. De novo. Por ser um reduto de contaminação do coronavírus e de qualquer outro vírus ou bactéria - fato comprovado por estudos e infectologistas -, deverá ser evitado por um número ainda maior de pessoas. A perda de demanda de passageiros ficou na casa dos 80% em todo o mundo e o transporte por ônibus é o que mais tem sofrido. Por depender quase que inteiramente da receita das tarifas, está desesperado. Perdeu R$ 2,5 bilhões no primeiro mês da pandemia com a queda da receita tarifária. Pediu ajuda ao governo federal, mas não foi atendido. Os sistemas metroferroviários, por já terem operações mantidas com recursos públicos, sentem menos. Mas mesmo assim o prejuízo chegou a R$ 933 milhões. E o fato de o transporte público brasileiro não ter um financiamento público dificulta ainda mais a retomada. Diferente, por exemplo, dos sistemas europeus e americanos, que são financiados quase que em sua totalidade por toda a sociedade, usuária ou não.
Quem respira mobilidade apela e alerta para a urgência de mudar o olhar sobre o transporte coletivo e seu valor de serviço essencial, confirmado mais uma vez com o coronavírus. A pós-pandemia, inclusive, será o momento ideal para tentar. “Eu não sei qual a importância política que vai ser dada ao setor, mas gostaria que ficasse visível o papel importante que ele vem tendo na crise mundial. Demostrou ser, mais uma vez, essencial a todos. Muito do conforto usufruído pelas pessoas que estão cumprindo o isolamento social de verdade, em home office, só é possível porque milhares de trabalhadores de áreas específicas estão nas ruas. E, com certeza, a maioria dessas pessoas chega para trabalhar de ônibus ou de metrô”, alerta e provoca Clarisse Linke, diretora executiva do ITDP no Brasil, para reforçar a importância do transporte público coletivo para a população e as cidades."Ele é muito importante para a resiliência das nossas cidades. Precisamos e vamos precisar ainda mais no pós-pandemia, com a mudança de comportamentos, de hábitos, de valores pela sociedade, que ainda não conseguimos sequer prever", pontua.
O futuro incerto, quase negro, que se desenha para o transporte coletivo no Brasil pós-pandemia, não é - para nossa sorte - consenso entre especialistas. Há quem duvida de um cenário tão dantesco. Defende que ainda é muito cedo para prognósticos eficientes. E há aqueles que fazem mais ponderações. Esperam o pior, mas defendem que ele não será tão ruim nem tão abrangente porque a sociedade tem aprendido com as lições ambientais, humanitárias e comunitárias da pandemia. Sabia, sabe ainda mais e saberá que o uso indiscriminado do automóvel vai impedir que as cidades respirem, que São Paulo possa voltar a ver pores do sol inimagináveis um mês atrás, que os canais de Veneza, na Itália, voltasse a ter águas claras, por exemplo. Viveremos uma espécie de luta entre o bem e o mal.
“A sociedade vai, sim, reutilizar o carro por um tempo. Veremos isso acontecer assim que as pessoas puderem sair de casa - o que não sabemos quando acontecerá. Talvez seja um movimento visto por um ano, talvez por dois anos. Haverá o impacto. Mas as mudanças que temos vivido e presenciado pesarão também. Mudou e mudará nosso comportamento. Principalmente dos jovens. As pessoas voltaram a ver o céu! A ver que eles estão diferentes porque as cidades estão respirando. Porque há 50%, 60% menos veículos nas ruas. Eles foram muito alertados dos danos provocados pelo automóvel, mas agora estão vendo na prática. Todos estão”, pontua Jurandir Fernandes, presidente da Divisão Latino-Americana da União Internacional de Transportes Públicos (UITP), entidade que congrega gestores e operadores dos mais diferentes sistemas de transporte público no mundo.
Para o especialista, as duas direções vão se contrapor. E para reforçar ainda mais o movimento menos-automóvel, o crescimento do e-commerce e do home office terão papel importante. Assim como o hábito - fortalecido desde a pré-pandemia - da mobilidade por aplicativo, inclusive da micromobilidade. "A sociedade descobriu serviços e aspectos da tecnologia que conhecia, mas não usava da memsa forma. O delivery tem crescido muito. Uma parcela da população está vendo como é fácil e prático antecipar as compras do supermercado pelo aplicativo e ir apenas buscá-las embaladas. Toda essa descoberta e o conforto que ela proporciona também influenciará a frequência e forma de deslocamentos”, analisa.
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