Surf nos ônibus: inconstitucionalidade e pressão sobre motoristas foram as razões do veto de Raquel Lyra ao PL do ‘surf’ nos ônibus

O governo do Estado reconhece que o PL atribui ao motorista de ônibus, indiretamente, a co-obrigação de prover a segurança pública nas vias públicas

Publicado em 26/11/2024 às 13:44 | Atualizado em 26/11/2024 às 15:47
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A inconstitucionalidade do PL nº 1366/2023, de autoria do deputado Pastor Júnior Tércio e que pretendia proibir a prática de surf e “morcegamento” nos ônibus da Região Metropolitana do Recife, foi a razão para o veto da governadora Raquel Lyra à proposta, que criou polêmica desde sua aprovação pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), no dia 30/10.

O principal argumento do veto, que foi indicado pela Procuradoria Geral do Estado (PGE, é que o Código Penal e o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) já proíbem a prática. A decisão foi divulgada nesta terça-feira (26/11), no Diário Oficial do Estado.

Nos argumentos, o governo de Pernambuco reconhece a boa intenção do PL, mas destaca a fragilidade dos rodoviários diante do que propõe o texto, afirmando que o projeto atribui ao motorista, indiretamente, a “co-obrigação de prover a segurança pública nas vias públicas, sendo este um dever do Estado”.

Embora nenhum dos dois artigos do CP e do CTB sejam, de fato, aplicados no dia a dia porque o chamado ‘surf’ nos ônibus muitas vezes não é flagrado pela polícia, restando ao motorista a decisão de agir no caso de flagrantes, foi o argumento jurídico encontrado pelo Estado.

Na verdade, as informações são de que o veto teria que acontecer e que o PL retornará à Alepe para ser refeito e melhorado. A governadora, inclusive, teria conversado com o autor do PL para que o texto fosse reconstruído com a participação das categorias que atuam no setor de transporte e sofrem diretamente com o 'surf' nos ônibus.

Assim, não haveria perigo de a Alepe decidir por derrubar o veto da governadora, que já era esperado pelo teor superficial do PL e, principalmente, pela polêmica que ele criou com os rodoviários e, posteriormente, até mesmo com os empresários de ônibus.

OS ARGUMENTOS DO GOVERNO DO ESTADO PARA O VETO

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Governadora Raquel Lyra vetou PL que proíbe 'surf' nos ônibus do Grande Recife - Guga Matos/JC Imagem

No texto, o governo de Pernambuco cita o artigo 235 do CTB, que prevê que conduzir pessoas, animais ou carga nas partes externas do veículo, com ressalva para casos autorizados, é uma infração grave.

E, na sequência, o artigo 176 do Código Penal, que diz: “utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para pagamento” tem como pena a detenção durante 15 dias ou dois meses ou multa.

Baseando-se nestes dois artigos, o Estado afirma que o sentido do PL 1366 já é contemplado na legislação nacional, concluindo que o adicional do Projeto estadual “não traria maior impacto, vez que, como visto acima, as condutas de surf e de morcegamento nos ônibus já são proibidas”.

PRESSÃO SOBRE EMPRESAS, QUE PRESSIONARÃO OS MOTORISTAS

O texto confirma o que gerou muita polêmica sobre o PL: que, ao prever sanções às concessionárias, a pressão recairá sobre os motoristas, que terão que fazer o papel do Estado de garantir a segurança nas ruas.

Confira o veto na íntegra

“Em outras palavras, o PL estabelece ser obrigação funcional do motorista combater ostensivamente a prática de surf e morcegamento nos ônibus, sob as penas da lei (estadual). Ao descumprimento do mandamento funcional, a concessionária será responsabilizada e, dada prática do ilício pelo motorista (o não cumprimento dos incisos I e II do art. 3º do PL), terá direito de regresso contra ele, o motorista”.

CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS MOTORISTAS

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PL aprovado na Alepe previa que as empresas de ônibus fossem multadas em casos da prática do 'surf', mas motoristas alegaram que a pressão seria sobre a categoria - Guga Matos/JC Imagem

Outro argumento do Estado é que o PL comete incompatibilidade com a Constituição Federal por legislar sobre as condições de trabalho dos motoristas de ônibus e por dispor sobre “trânsito e transporte”, tópicos reservados à União.

“Ao determinar-se, no art. 3º, ser obrigação do motorista solicitar a interrupção da prática ilícita de surf ou morcegamento nos ônibus e, ato contínuo, solicitar a intervenção da força policial, impedindo-o de movimentar o veículo enquanto não forem obstadas as referidas práticas (caput do art. 4º), sob pena de aplicação de multa à concessionária (parágrafo único do art. 4º), que fatalmente cobrará regressivamente do motorista pelo descumprimento da nova obrigação legal funcional, tais dispositivos inequivocamente avançam na dimensão da esfera trabalhista das obrigações do motorista de ônibus”, argumenta o Estado.

PRÓXIMOS PASSOS DO PL

O posicionamento do governo do Estado já foi encaminhado à Alepe e, como o veto foi por inconstitucionalidade, será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa e levado a plenário. A derrubada do veto de Raquel Lyra dependeria do voto de pelo menos 25 deputados, que representam a maioria na Alepe.

Sobre a reconstrução do PL, a assessoria do deputado Pastor Pastor Júnior Tércio informou que os próximos passos ainda estão sendo analisados pela equipe jurídica do gabinete.

ENTENDA O PL DO SURF NOS ÔNIBUS

A aprovação pela Alepe do PL 1366/2023 virou um grande e explosivo problema para o governo do Estado, a quem cabe sancionar ou não a proposta. O projeto estabelece multas de até 100 vezes o valor da passagem para os infratores e sanções às empresas que não observarem a lei.

Os motoristas de ônibus entendem que o PL transfere a responsabilidade para os próprios rodoviários, que já estão sobrecarregados com a dupla função e a condução dos coletivos. Eles alegam que, da forma como está, o PL vai gerar uma pressão sobre as empresas, que irá pressionar a categoria. Por isso, realizaram protestos contra o projeto em frente a diversas instituições públicas e pela cidade.

PROJETO QUE COÍBE O SURF NOS ÔNIBUS TEM GERADO POLÊMICA DESDE SUA APROVAÇÃO

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As razões jurídicas foram indicadas pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) e a polêmica com a categoria pesou na decisão - Guga Matos/JC Imagem

Embora o deputado, autor do projeto, garanta que a intenção do PL foi boa - e parece, sim, ter sido bem intencionada -, a execução da proposta é, de fato, difícil.

É quase inexequível da forma como está. Isso porque não envolve o que mais é necessário: a segurança pública. Não à toa, os rodoviários já começaram a fazer essas ponderações. Alegam que a explosão do ‘surf’ e ‘amorcegamento’ por vândalos nos ônibus é um problema de polícia. E, não, de operadores - tanto motoristas como empresas - ou de passageiros.

E, ressabiados com as perdas históricas vivenciadas pela categoria e agravadas com a pandemia de covid-19, gritam que vai sobrar para o motorista de ônibus. Que a ‘boa intenção’ do PL aprovado em plenário pela Alepe vai representar pressão sobre o trabalhador. E vai mesmo.

Além do teor em si do PL, que de fato não é prático, é preciso considerar um componente político na discussão: as eleições internas do Sindicato dos Rodoviários de Pernambuco, que acontecerão em breve e está sendo alimentada por todo e qualquer tema que envolve a categoria. É tanto que um dos protestos foi realizado pela atual direção do sindicato e o segundo foi pela oposição.

RODOVIÁRIOS ALEGAM QUE MULTAS ÀS EMPRESAS VÃO GERAR PRESSÃO SOBRE CATEGORIA

Uma lei para coibir o ‘surf’ nos ônibus nós esperamos há muito tempo porque o motorista tem sido vítima desses vândalos há muito tempo, mas o deputado não teve o cuidado de proteger o motorista. Quando ele diz que o motorista tem que parar o ônibus e tirar o vândalo de cima, está colocando em risco a vida do profissional”, afirmou o rodoviário Josival Costa, secretário do Sindicato dos Rodoviários.

“O fato de o PL penalizar as empresas é outro problema porque elas irão para cima dos motoristas quando receberem multas. Irão transferir para os trabalhadores. haverá multas, suspensões e até demissões. E para não ser demitido, os motoristas vão ter que se submeter a essa situação de risco”, reforçou.

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