Pandemias geralmente estão associadas a pânico generalizado e medo, especialmente quando decorrentes de agentes infecciosos inéditos na ciência. É o caso do novo coronavírus, que desperta curiosidade, receio, estresse e ansiedade às populações. É um panorama que tende a prejudicar a saúde mental. Sobre o assunto, a jornalista Cinthya Leite, titular da coluna Saúde e Bem-Estar, deste JC, conversou com o psiquiatra Amaury Cantilino, professor da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Departamento de Psicoterapia da Associação Brasileira de Psiquiatria. “O problema com o coronavirus é que a percepção de ameaça chegando se prolonga por semanas”, diz o médico, que é presidente da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria.
JC – O atual cenário da pandemia do coronavírus tem gerado medo e pânico em boa parte da população. Como esses sentimentos podem perturbar a saúde mental?
AMAURY CANTILINO – Com o coronavírus, tem ocorrido uma outra pandemia, a do medo. Há uma frase atribuída a William Thomas (sociólogo americano, falecido em dezembro de 1947) que diz: “Se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências”. O medo é uma emoção que surge diante de situações que ameaçam a nossa integridade física ou mental. Ele prepara o nosso corpo para fugir ou lutar. A rigor, a ameaça real só existe para a pessoa infectada, se ela apresentar uma forma grave. O problema com o coronavírus é que a percepção de ameaça chegando se prolonga ao longo de semanas. É como se estivéssemos antecipando e corporificando essa ameaça, como se um predador estivesse nos rondando há semanas preparando o bote. O que acaba acontecendo como consequência é que muitos indivíduos passam a sofrer psicologicamente, e até fisicamente, em consequência desse estresse que vai se cronificando.
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JC – Como perceber que o medo ou o pânico sem medidas pode sinalizar algum transtorno psiquiátrico?
AMAURY CANTILINO – Esse medo constante pode desgastar a pessoa a ponto de provocar um sofrimento muito significativo ou de impactar no seu funcionamento durante o trabalho, os estudos e nas relações pessoais. Pandemias como a do coronavírus nos lembram da fragilidade da vida. Se a isso se somarem sintomas depressivos, preocupações difíceis de controlar, dificuldade para relaxar, crises de ansiedade e de apavoramento, pode ser necessário procurar um profissional da área.
JC – Que epidemias e pandemias anteriores a esta podemos relembrar associando a perturbações na saúde mental?
AMAURY CANTILINO – As epidemias são sempre acompanhadas de uma grande apreensão generalizada. Suas consequências médicas e também psicológicas são citadas na literatura, sobretudo com a peste negra e a gripe espanhola, entre outras. No entanto, aparentemente a do coronavírus tem atingido uma proporção impressionante por causa da velocidade e da frequência das informações. Qualquer nova notícia em outro continente chega ao nosso celular em pouquíssimo tempo, acompanhamos tudo em tempo real, o que leva a uma sensação de proximidade com o perigo. Soma-se a isso o fato de viajantes de longas distâncias serem habituais, aumentando a ideia de que qualquer pessoa é suspeita. É estranho porque, em situações de crise, nos fortalecemos com a presença do outro. Numa epidemia como esta, contudo, o outro vira uma ameaça.
JC – A solidão da quarentena geralmente leva a quadros ansiosos ou depressivos? É importante o apoio terapêutico?
AMAURY CANTILINO – Tenho recebido ligações de amigos que moram na Europa pedindo apoio emocional. A quarentena é uma medida legítima para que os governos tenham mais controle da situação. Ela tem óbvias indicações para evitar calamidades. No entanto, para quem a vivencia, acaba sendo percebida como uma intimação assustadora, um exílio. O suspeito requer ajuda, e a quarentena é um afastamento da sociedade, dos amigos, da família. Há uma perda do suporte afetivo. É natural que a quarentena gere, na pessoa, uma grande sensação de insegurança. Em muitos casos, vale a pena ter um apoio terapêutico para que isso seja vivenciado de maneira menos traumática.
JC – Pensando nas pessoas que vivem com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) associado à limpeza, como elas ficam diante das medidas de higiene, como lavar as mãos com frequência e evitar tocar em superfícies? É mais difícil lidar com pandemias quando se tem um transtorno prévio?
AMAURY CANTILINO – Sem dúvidas é mais difícil. Pessoas com TOC, com transtorno de ansiedade de doenças (a hipocondria) e com fobias de epidemias sofrem bem mais. Neste período, percebemos reagudizações de quadros que estavam equilibrados neste período. Esses quadros estão associados a uma percepção de risco aumentada em relação às doenças. Quando essas pessoas percebem que as referências (amigos e governantes, por exemplo) então alarmados, acabam por legitimarem os seus pensamentos catastróficos prévios.
JC – Que recomendações daria para a população não entrar em pânico? E o que pode ser sinal de alerta em relação à saúde mental nesta pandemia de coronavírus?
AMAURY CANTILINO – No livro chamado A Peste, de Albert Camus, fala-se que "é preciso criar um sentido para a vida. E, às vezes, trocar de sentido". É frequente nos apegarmos às nossas expectativas e aos nossos desejos. No entanto, a vida tem seu próprio curso, e temos uma atuação relativamente limitada nesses movimentos que ela faz. É preciso vivenciar a realidade como ela se apresenta, estar aberto para a imprevisibilidade e intervir no que estiver ao nosso alcance. O coronavírus tem nos deixado apreensivos, mas pode nos trazer aprendizados e importantes reflexões sobre nós mesmos, sobre a nossa vida, sobre a humanidade.