Recifense, o infectologista Bruno Ishigami, 29 anos, é um dos milhares de profissionais de saúde que diariamente deixam suas casas para cuidar de quem luta pela vida em hospitais voltados a pacientes infectados pelo novo coronavírus. Nesta entrevista, deixamos de lado o universo epidemiológico da doença para retratar a face humana da covid-19. Na linha de frente, Bruno é um entre tantos que se expõem ao risco do adoecimento ao protagonizar um encontro entre quem sofre e quem tem a possibilidade de oferecer conforto - e, em algumas vezes, recuperação. “Vem uma tempestade de emoções aliada à sobrecarga física. Sou um privilegiado por conseguir contribuir trabalhando. Fácil não é; é desafiador”, diz Bruno nesta conversa com a titular desta coluna, Cinthya Leite.
JC – Já se passaram quase três meses desde a confirmação dos primeiros casos de covid-19 em Pernambuco. Como tem sido trabalhar no front ao longo desse período?
BRUNO ISHIGAMI - A rotina cansativa é o que mais tem marcado, pois trabalhar diretamente com um paciente infectado pelo coronavírus demanda energia física e mental. A minha rotina, que era de até 40 horas semanais antes da pandemia, passou a ser de 80 horas por semana. Sentimos um impacto no corpo, as noites ficam mal dormidas e vem um pouco de tensão por pensar em pacientes graves. Emocionalmente também é desgastante porque quem se coloca para trabalhar neste momento está realmente disposto a ajudar de alguma forma. O detalhe é que percebo muito sofrimento: a população e os pacientes estão assustados, os profissionais de saúde cansados, as famílias com medo de perder os parentes... Então, há uma demanda emocional muito grande, até porque nós fazemos a ponte entre a família e o paciente. Tentamos controlar minimamente o quadro clínico dos doentes, passamos as informações para parentes que estão há sete, dez dias sem ver quem está internado. Isso impacta muito.
JC – Fazer esse meio-campo é o mais difícil?
BRUNO ISHIGAMI – O desafio é ficar relativamente tranquilo diante de tudo o que acontece. Como a gente vê muito sofrimento, é inevitável que essa sensação não nos atinja de alguma forma, mesmo que não estejamos percebendo o quanto isso gera algum desgaste. Em um dos serviços onde trabalho, logo ao chegarmos, temos que trocar de roupa, colocar equipamento de proteção individual, roupa de bloco cirúrgico e, por cima dela, um capote impermeável. Ainda usamos botas, óculos, equipamento de proteção facial, touca... Só isso já muda a dinâmica de trabalho. Estamos descobrindo a doença à medida em que ela vem acontecendo. Além de estarmos com o paciente, temos que estudar o tempo todo, porque uma semana de conhecimento sobre o coronavírus faz muita diferença. É uma sensação parecida com a época do surgimento do HIV, com pesquisadores tentando descobrir como essa infecção atingia o nosso organismo e como reduzir os impactos por ela causados.
JC – Como é o trabalho em equipe nas unidades de covid-19?
BRUNO ISHIGAMI – Há alguns anos, começamos a bater na tecla da multidisciplinaridade, unindo trabalho entre fonoaudiólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos... Agora, com a covid-19, isso fica mais necessário. Diante da sobrecarga, os profissionais de saúde criam sentimento de união. Essa é a minha sensação, mesmo que seja um pouco romantizada. Mas vejo que surge a solidariedade: um profissional ajuda o outro, e acredito que isso é algo que a covid-19 traz de aprendizado. Sem dúvidas, essa epidemia modificará as relações entre os profissionais de saúde.
JC – Como é a sua rotina no front?
BRUNO ISHIGAMI – De segunda a sábado, trabalho num hospital que atende pacientes com suspeita e confirmação de covid-19. Prestamos cuidados a eles diariamente e, ao final do plantão, falo com as famílias por videochamadas. Esse contato faz toda a diferença. Há um gasto emocional porque lidamos diariamente com o sofrimento das famílias e dos pacientes. Mas, ao mesmo tempo, vemos uma relação de amor puro entre pai e filho, irmãos, parceiros... Trabalho em mais outro hospital que também cuida de pacientes com coronavírus. Nele, sou médico da triagem. Digo que sou um grande privilegiado por conseguir contribuir fazendo o que estou fazendo. É desafiador. Há dia em que estamos mal; em outros, melhores. Há momentos de choro. A realidade que tenho ouvido dos colegas é a de altos e baixos: dias mais felizes, outros mais tristes. É uma tempestade de emoções mais sobrecarga física.
JC – Algum paciente o marcou?
BRUNO ISHIGAMI – Há o caso de uma paciente que, antes de ter covid-19, já vivia com uma doença avançada. Por uns 15 dias, liguei para a mãe dela para contar como ela estava. Os informes não eram de bom prognóstico. Isso me marcou. Fiquei mal por alguns dias, pois foi muito difícil descrever a piora da paciente para a mãe, que também tinha que ser preparada. Eu tirava um momento do meu dia só para falar com essa mulher. Não deu para deixar de me envolver com uma situação dessa. Falar com as famílias presencialmente já é difícil e, por telefone, mais ainda. Ficava clara, para mim, a dor dessa mãe, que queria saber se a filha estava sofrendo, assim como todos os outros parentes de pessoas internadas. Isso mostra como, hoje em dia, nosso trabalho é mais do que curar. A tarefa é proporcionar a redução do sofrimento ao máximo possível. Num hospital de covid-19, essa missão é muito evidente.