Da Agência Brasil
A dor crônica na perna direita foi um tormento na vida da pintora Frida Kahlo, um dos maiores nomes das artes plásticas da América Latina.
Infectada pelo poliovírus aos 6 anos, a mexicana teve que conviver toda a vida com as sequelas da poliomielite, que deixaram a perna atrofiada, mais fina e curta que a outra.
Acometido pelo mesmo vírus, o jornalista Boris Casoy só começou a andar aos 9 anos de idade, depois de uma cirurgia feita nos Estados Unidos para tratar sequelas causadas pela poliomielite.
O compositor canadense Neil Young também precisou reaprender a andar após se recuperar de um quadro da doença, que quase o levou à morte.
Histórias como essas só se tornaram raras devido à vacinação contra a poliomielite.
Calcula-se que, no mundo todo, nos últimos 200 anos, as vacinas seriam responsáveis por um aumento médio de 30 anos no tempo de vida das pessoas", diz o médico Guido Levi
A imunização avançou com mais força na segunda metade do século 20. Antes que isso acontecesse, a pólio paralisava mil crianças por dia no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Por isso, a poliomielite passou a ser temida e mais conhecida com o nome de paralisia infantil.
Especialista em vacinas e integrante da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações do Estado de São Paulo, o médico Guido Levi explica que há um consenso internacional de que as vacinas foram o fator de maior impacto na saúde humana nos últimos anos, sendo tão importantes quanto o acesso ao saneamento básico e à água potável.
"Calcula-se que, no mundo todo, nos últimos 200 anos, as vacinas seriam responsáveis por um aumento médio de 30 anos no tempo de vida das pessoas. No Brasil, isso ocorreu em um período muito mais curto e mais recente. No início da década de 1970, o tempo de vida médio da nossa população era de 45 anos. Hoje, é mais de 75 anos. O principal fator para isso foi a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973", diz Guido.
PNI 50 ANOS: UM MODELO MUNDIAL
O Programa Nacional de Imunizações (PNI), ligado ao Ministério da Saúde, completa 50 anos no dia 18 de setembro.
O historiador Carlos Fidelis conta que o PNI foi criado em 1973 após a experiência bem sucedida do Brasil em eliminar a varíola, primeira doença extinta do planeta graças às vacinas e que, antes disso, matou mais de 300 milhões de pessoas apenas durante o século 20.
Mas foi depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição de 88, que o PNI começou a consolidar a sua atuação em todo o território nacional e para todos os brasileiros. E de acordo com Fidelis, foi um fortalecimento em mão dupla.
O PNI cresceu nos anos 90 e começou a incorporar uma grande quantidade de vacinas nos anos 2000, em um processo contínuo de avaliação de novas tecnologias.
A aquisição mais recente foi a vacina meningocócica ACWY, implicando a proteção contra a meningite e infecção generalizada.
O PNI também vai deixar de distribuir a vacina oral contra a pólio, as famosas gotinhas, substituindo totalmente pela versão injetável a partir do ano que vem.
POLIOMIELITE LEVAVA CRIANÇAS A UM PULMÃO DE AÇO
Antes de a imunização avançar na década de 1970, o médico Guido Levi recorda que "todos que temos mais idade ou estudamos esse período (em que a pólio era frequente) vimos crianças com muletas, pernas mecânicas ou coisas piores."
O médico acrescenta que, quando a doença acometia os nervos que controlavam a respiração, a criança ia para um pulmão de aço, uma máquina que fazia sua respiração artificialmente.
"E, lá, elas entravam para ficar o resto da vida. Visitei uma enfermaria de pulmão de aço e foi uma das coisas mais chocantes que aconteceram na minha carreira profissional", recorda.
VARÍOLA ERRADICADA
A poliomielite é um dos casos mais emblemáticos dessa transformação, mas não foi o primeiro.
Em 1980, as vacinas levaram a humanidade a erradicar a varíola, enfermidade responsável por milhões de mortes e associada a crises sanitárias ao longo da história, como a epidemia que culminou na Revolta da Vacina, no Brasil.
Para se ter uma ideia da gravidade da varíola, é preciso destacar que a doença fez 300 milhões de vítimas apenas no século 20.
A dimensão desse número supera as mortes causadas pelas duas guerras mundiais e o Holocausto nazista, além de diferentes estimativas de vítimas da colonização europeia na América.
A coordenadora da Assessoria Clínica do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Lurdinha Maia, destaca que erradicar uma doença como essa é a maior prova dos benefícios da vacinação.
"A importância da vacinação na idade certa e no tempo adequado tem como maior exemplo não termos mais a varíola no mundo inteiro. Essa é uma doença terrível, que dizimou a população mundial", destaca Lurdinha.
"Quando a gente fala de pólio, o último caso no Brasil foi em 1989, em Souza, na Bahia. E o último caso nas Américas foi em 1994. Infelizmente tivemos agora um caso no Peru. Isso deixa em alerta todos os países vizinhos."
A história das vacinas e a história da varíola se misturam, uma vez que o primeiro imunizante do mundo foi desenvolvido para prevenir contra essa doença.
O inglês Edward Jenner, no século 18, inventou a primeira vacina na tentativa de conter a varíola e conseguiu amenizar os casos graves em pacientes vacinados.
As primeiras epidemias de varíola foram oficialmente registradas na Europa durante a Idade Média, no século 10.
Cientistas investigam, porém, vestígios muito anteriores que indicam possibilidades de casos no Antigo Egito, nas Cruzadas e navegações vikings.
No Brasil, a história da varíola está relacionada à colonização, e o primeiro surto registrado de varíola ocorreu em meados de 1555, quando a enfermidade foi introduzida no Maranhão por colonos franceses.
O tráfico de africanos escravizados e a imigração portuguesa também causaram surtos no País, do litoral para o interior.
A eliminação da doença no Brasil é anterior à criação do PNI e se deu em 1971, seis anos antes do último surto no mundo, registrado em 1977, na Somália.
VITÓRIA CONTRA PÓLIO
No Brasil, as campanhas contra a poliomielite ganharam força na década de 1980, e o último caso registrado foi em 1989.
Pesquisador de Bio-Manguinhos/Fiocruz desde a década de 1960, Akira Homma participou do trabalho de estruturar a produção das vacinas contra a poliomielite no Brasil, decisivo para que a doença fosse erradicada.
Akira Homma integrou, como técnico, os primeiros testes da vacina oral contra a poliomielite no País, na década de 1960, no Instituto Adolfo Lutz, e ajudou a organizar o laboratório de virologia quando entrou na Fiocruz, em 1968, participando do isolamento e caracterização do vírus da pólio.
Após experiências no exterior, Akira Homma chegou à direção de Bio-Manguinhos nas décadas de 1970 e 1980, quando a produção da vacina oral no Brasil foi de fato estruturada.
Ele destaca que fabricar a vacina no País foi de extrema importância, mas a mobilização social para que as vacinas chegassem às crianças na época, por meio dos dias nacionais de vacinação, também teve um papel central.
"O governo federal possibilitou a adesão de todos os ministérios à campanha, e também toda a sociedade brasileira foi envolvida nesse processo. Houve uma motivação muito grande da sociedade e até da iniciativa privada. Houve a participação de milhares de voluntários e também da mídia, explicando o papel da vacinação", ressalta Akira Homma.
"Em 1980, tínhamos 1.290 casos de poliomielite. Em 1981, caiu para 122. Em 1982, para 42 casos. E, em 1989, acontece o último caso. Esse é o impacto de altas coberturas vacinais. Em um dia se conseguia vacinar 18 milhões de crianças."
Apesar da vitória nacional contra a doença no passado, a poliomielite ainda existe de forma endêmica no Afeganistão e no Paquistão. Houve casos pontuais registrados recentemente no continente africano, nos Estados Unidos, em Israel e no Peru.
TÉTANO MATERNO E NEONATAL: O MAL DOS SETE DIAS
Ameaça grave à saúde dos recém-nascidos, o tétano materno e neonatal era conhecido como o "mal dos sete dias", porque surgia a partir de uma semana após o parto e tinha uma evolução aguda e letal, causando contraturas musculares generalizadas que poderiam se agravar até impedir a respiração.
A doença foi considerada eliminada de todo o continente americano em 2017, mas chegou a ser responsável por mais de 10 mil mortes de recém-nascidos ao ano na região.
No Brasil, o tétano materno e neonatal foi eliminado em 2012.
Os bebês são contaminados pela bactéria causadora do tétano durante o parto, por motivos como falta de condições e instrumentos esterilizados.
Mas a vacinação das gestantes e mulheres em idade fértil com a vacina contra tétano, difteria e coqueluche acelular (dTpa) foi um motivo decisivo para essa doença ter praticamente desaparecido, porque os anticorpos são transmitidos pela mãe aos filhos.
"Hoje, a maior parte das enfermarias de tétano que existiam está fechada, principalmente pelo uso bastante extenso da vacinação antitetânica", conta o médico Guido Levi.
"As crianças morriam rapidamente, em poucos dias. No máximo, em uma semana ou duas. Também não havia tratamento adequado."
RUBÉOLA CONGÊNITA
A eliminação da síndrome da rubéola congênita é outro motivo para comemorar o sucesso da vacinação.
Transmitida pela placenta ao feto, a infecção da mãe pelo vírus da rubéola pode resultar em aborto, morte fetal ou anomalias congênitas como diabetes, catarata, glaucoma e surdez, sendo este último o sintoma que aparece primeiro.
Dependendo da fase da gestação em que ocorrer a infecção, a chance de a doença atingir o feto chega a 80%.
Os últimos casos da doença foram registrados no Brasil em 2010, e a síndrome foi declarada eliminada do continente americano em 2015.
A consultora da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) Carla Domingues ressalta que as sequelas causadas pela síndrome da rubéola congênita são irreversíveis e, assim como em outras infecções, os problemas podem afetar diversas áreas da vida.
"São doenças que podem trazer problemas neurológicos seríssimos, que vão comprometer o lado cognitivo das crianças e o aprendizado", alerta.